Da janela da universidade do Porto vê-se o mundo inteiro

  • Joana Azevedo Viana
  • 20 Junho 2017

Atentos às tendências e notícias mundiais, na FCUP e na FEUP acelera-se o processo de interação com o mundo real.

Poucos meses separam o momento em que a Amazon abriu uma mercearia em Seattle onde as pessoas não têm de interagir com ninguém para comprar a sua comida e o momento em que a gigante cibernética comprou a cadeia norte-americana Whole Foods por mais de 12 mil milhões de euros. O anúncio da fusão, feito na semana passada, apanhou muitos de surpresa e espalhou o pânico entre a maioria dos 90 mil funcionários dos supermercados da marca.

Quando a loja de Seattle foi inaugurada em março, o The Verge lançou a manchete: “Lojas Amazon Go podem só precisar de seis funcionários humanos”. Na entrada: “De três a um máximo de dez funcionários”. Com a aquisição da Whole Foods, quase o mesmo número de pessoas que vivem em Valongo ou em Viana do Castelo veem os seus postos de trabalho em risco. Mas há outros riscos encerrados no mega negócio, intimamente ligados à chamada inteligência artificial, e é sobre esses que vários especialistas da área de tecnologia e computação estão cada vez mais a debruçar-se.

É o caso de Eugénio Oliveira, professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Contactado pelo ECO dias depois do anúncio da Amazon para debater projetos de transformação digital, começou por falar precisamente dos desafios e questões que os avanços tecnológicos têm levantado.

“Entre 5 e 8 de setembro a FEUP vai acolher uma conferência sobre inteligência artificial e, no primeiro dia, vamos ter uma sessão aberta ao público para discutir a chamada ‘beneficial AI’ e os problemas éticos e socioeconómicos que podem advir das últimas realizações e avanços da inteligência artificial”, explica o ex-diretor do Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência de Computadores (LIACC), cargo ao qual resignou no ano passado já a preparar-se para a reforma.

Têm sido lançados livros muito bons por investigadores portugueses, um do meu colega do Técnico Arlindo Oliveira e outro do Pedro Domingos, que é professor na Universidade de Washington, chamado ‘The Master Algorithm’. É inegável que este é um assunto que tem levantado bastante polémica e que está muito em voga por estes dias.

Eugénio Oliveira

Professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Desenhar estratégia

Os grandes líderes de empresas tecnológicas concordam, entre eles o CEO da Tesla, Elon Musk, e Demmis Hassabis, fundador do projeto DeepMind da Google. Um mês antes de a Amazon abrir a sua primeira mercearia automatizada, juntaram-se a quase mil outros investigadores e líderes de AI para definirem novas diretrizes para garantir a segurança e a ética à medida que a aprendizagem automática vai sendo aperfeiçoada. Essa mesma questão foi levantada por jornalistas especializados agora que a Amazon está prestes a “controlar mais de 400 fontes de dados primordiais sobre os comportamentos dos consumidores”, como lembrou o site GeekWire no rescaldo da fusão com a WholeFoods.

Na FEUP, e também na Faculdade de Ciências do Porto (FCUP), é este um dos motores da investigação e desenvolvimento. Um exemplo concreto é a aplicação de smartphone que uma equipa da FCUP está a desenvolver para “mentir às outras apps”, como explica Luís Antunes, diretor do departamento de Ciência de Computadores. “O objetivo é garantir a privacidade das pessoas, ou seja, dizer a uma app que estou no Porto, depois em Lisboa, depois em Coimbra e assim ir baixando a qualidade dos dados que a generalidade das aplicações recolhem de forma muito agressiva. Não há hipótese de aceder às funcionalidades de cada app sem ceder a nossa privacidade, quando quase todas são supostamente gratuitas.”

As preocupações são motor mas nunca obstáculo ao trabalho da Universidade do Porto, cujo parque tecnológico (UPTEC) integra hoje 192 empresas, e de onde têm saído várias startups de sucesso, em parte fruto de um fenómeno pós-crise delineado por Antunes. “O que foi muito notório foi que, em 2011, 2012, um conjunto de pessoas saiu do país — foi o meu caso, fui para a Google e depois voltei — mas outras ficaram em Portugal e sofreram cortes de 30% nos ordenados, que as levou a virarem-se para as startups.”

Desde então, dos cérebros da Universidade do Porto saíram várias: a Interrelate, que faz data mining (“os dados não servem para nada sem correlações e sem se extrair conhecimento deles”), a SplitForward, uma plataforma de gestão de dados privados recolhidos na área de marketing e a VirtusAI, que desenvolve softwares para as áreas de Big Data e Internet das Coisas (IoT).

Também saíram projetos de cibersegurança e privacidade, ou outros como o Future Cities — SenseMyCity, que está a ser desenvolvido pela professora Ana Aguiar, para melhorar a cidade do Porto. Através dos sensores dos smartphones, a app regista o dia-a-dia dos utilizadores para avaliar situações que vão desde os consumos de combustível e o trânsito numa dada rua a uma dada hora até aos níveis de stress dos habitantes que estão a participar na experiência. O objetivo é usar a IoT para melhor a acessibilidade e a vivência na cidade. “Temos algum trabalho na área e é um tema que a mim me interessa particularmente”, explica Eugénio Oliveira, há mais de 30 anos dedicado à ciência de computação.

“Numa fábrica em que todas as máquinas e dispositivos estão presentes e contactáveis numa rede a produzir dados, podemos gerir a produção com maior flexibilidade. É algo que permite praticamente tudo em todo o mundo, temos esta rede de coisas e de pessoas, todas com uma identidade eletrónica e todas ligadas entre si, tudo a produzir dados. Nunca se sabe onde isto vai parar. Aqui em Portugal ainda não estamos envolvidos nisso, mas vai acontecer: entra numa loja e já sabem quem é, o que já comprou, as suas preferências, o seu perfil, tudo vai estar disponível e depois vêm ter consigo para lhe dizer ‘olhe, que se calhar devia espreitar aquela prateleira’.” Quase podia estar a falar da mercearia da Amazon. “É assustador e é preciso discutir as questões socio-éticas em torno disto”, sublinha o especialista.

Tendo em mente que hoje estamos em permanente contacto e a trocar dados, Antunes e a sua equipa têm estado a desenvolver um projeto com a Carnegie Mellon, o HYRAX, para permitir a comunicação em rede quando as comunicações estão em baixo e facilitar o contacto em situações de desastre. O professor dá o exemplo do fatídico incêndio que varreu Pedrógrão Grande este fim de semana, embora admita que o facto de essa área geográfica ser muito grande e de ter uma densidade de aparelhos eletrónicos muito baixa pode dificultar o objetivo.

“Mas imagine numa cidade com maior densidade de aparelhos. Se a rede for abaixo, o que nós propomos — e já temos protótipos para isso — é que os aparelhos comuniquem entre si. Saindo do campo dos desastres, imagine que está no estádio do Dragão e que acabou de gravar um golo de um ângulo fantástico mas não tem rede de internet; desta forma pode partilhar o vídeo com toda a gente que lá está.”

É um facto que as empresas portuguesas estão a começar a despertar para a importância da tecnologia e isso também é notório no Porto. “O nosso tecido empresarial não estava muito habituado a isso, mas tem vindo a acontecer”, assume Luís Antunes. Neste momento, para além de irem buscar alunos à U. Porto “muitas vezes ainda antes de eles terem concluído os mestrados”, as empresas recorrem aos docentes e investigadores para consultoria, como foi o caso de uma ligada ao mercado de ações que há alguns meses contactou Eugénio Oliveira para lhe pedir que, através do data mining, faça previsão da evolução do mercado, tratando analiticamente os dados à disposição.

O mesmo tipo de conhecimentos avançados também é aplicado em projetos como um em que o investigador está envolvido, financiado pela Comissão Europeia, com o objetivo de tornar as estradas mais seguras. “São 16 parceiros de 16 países, um projeto de muitos milhões com fundos do H2020”, explica. “A nós pediram-nos para envolver a AI e assim modelar comportamentos dos condutores, dos peões, etc., para podermos simular muitas situações de risco e tentar antecipar que tipo de reações podem acontecer, quais delas são perigosas e o que deve mudar nas escolas de condução, no treino, na sinalética das estradas e nos próprios veículos para evitar ao máximo acidentes.”

Com a Masdima, uma das empresas incubadas na UPTEC e que desenvolve software para que as empresas possam rastrear e gerir as suas operações diárias de forma mais eficiente, foi o LIACC que abordou a companhia portuguesa de aviação para uma potencial parceria. “Um aluno de doutoramento aqui da faculdade trabalha na TAP”, confidencia o homem que dirigiu aquele laboratório da FEUP durante oito anos. “Ainda não sabemos se eles vão embarcar na ideia, mas estamos confiantes.”

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