As provisões tramaram o BES? Os argumentos de Ricardo Salgado

É uma versão alternativa dos factos. Na visão de Salgado sobre o que teria acontecido se o regulador tivesse sido menos exigente, o BES cumpria os rácios de solvabilidade e estaria hoje em atividade.

Ricardo Salgado foi tido pelo Banco de Portugal como o grande culpado pela derrocada do Banco Espírito Santo (BES). O regulador considerou que o antigo banqueiro fez uma “gestão ruinosa” do banco e condenou-o a pagar uma multa de quatro milhões de euros. Salgado contestou de imediato a decisão do Banco de Portugal, conhecida em junho do ano passado, e está desde então a lutar em tribunal pela anulação desta condenação.

Agora, faz-se valer de um “parecer técnico contabilístico-financeiro” que atribui culpas ao Banco de Portugal pelo colapso do BES. O argumento do parecer, avançado em primeira mão pelo Jornal de Negócios e a que o ECO também teve acesso, é só um: não tivesse o Banco de Portugal exigido a constituição de provisões consideradas demasiado elevadas e os rácios de solvabilidade do BES não teriam caído abaixo dos mínimos requeridos pela regulação bancária. Desta forma, o banco poderia ter mantido a atividade, em vez de ser alvo de uma resolução, como aconteceu a 3 de agosto de 2014.

É esta tese que é defendida, ao longo de mais de 100 páginas, no parecer pedido por Ricardo Salgado a João Carvalho das Neves, professor do ISEG e membro do conselho geral e de supervisão da EDP. A defesa de Salgado quer que este parecer seja admitido no processo de impugnação contra a decisão do Banco de Portugal, que está a decorrer no Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão, em Santarém. No fundo, Salgado quer que aquilo que já por várias vezes disse publicamente — que o colapso BES foi provocado pelo Banco de Portugal — seja considerado em tribunal como prova contra a atuação do regulador.

O argumento é questionável, responde o Banco de Portugal. O objetivo de Salgado é anular uma decisão do Banco de Portugal que tem por base três acusações ao antigo banqueiro: gestão ruinosa, em detrimento dos depositantes, investidores e credores; prestação de informações falsas e violação das normas de conflito de interesses. Ora, em nenhuma parte do parecer apresentado por Ricardo Salgado é negada a prática de qualquer um destes atos. Apenas é alegado que, se o BES não tivesse sido obrigado a constituir provisões tão elevadas, não teria colapsado.

É isso mesmo que argumenta o Banco de Portugal: segundo o Jornal de Negócios, o regulador apresentou o seu próprio parecer, que conclui que os argumentos apresentados no parecer de Salgado “exorbitam inequivocamente do objeto do recurso de impugnação judicial”.

Questionável ou não, sobra a visão de Ricardo Salgado sobre o que teria acontecido ao BES se o regulador não tivesse regulado tanto.

Provisões, imparidades e passivos contingentes

O parecer começa por distinguir os conceitos de provisão, imparidade e passivo contingente, já que a tese assenta na ideia de que, se aquilo que o Banco de Portugal obrigou que fosse considerado provisão pudesse ter sido contabilizado como passivo contingente, o destino do BES teria sido outro.

  • Provisão: “É fundamental que se perceba que uma provisão constitui uma dívida com data de vencimento incerto ou de montante incerto, que vai exigir um pagamento por parte da entidade, cujo montante e data de vencimento devem ser estimadas de forma fiável e que esse montante estimado é registado no balanço da entidade”;
  • Imparidade: “Uma imparidade é uma estimativa de perda de valor de um ativo, que também é estimado, mas não exige a saída de dinheiro da entidade, consubstanciando-se numa perda de valor do bem ou com uma certa probabilidade vir a encaixar um valor inferior ao registado na contabilidade”;
  • Passivo contingente: “Não é uma dívida no presente, mas é uma potencial dívida, que se tornará efetivamente dívida no futuro se ocorrer o facto que desencadeia a sua efetividade”.

O que João Carvalho das Neves defende é que, não se tratando de uma dívida, mas de uma potencial dívida, o passivo contingente não seria registado no balanço do BES, devendo apenas ser explicado nos anexos às demonstrações financeiras. Assim, o banco não teria entrado em incumprimento dos rácios de solvabilidade exigidos pela supervisão bancária, como aconteceu no primeiro semestre de 2014. Nessa altura, reportou prejuízos históricos de 3.755 milhões de euros e um rácio de solvabilidade de 6,5%, quando os supervisores exigiam um mínimo de 10%.

As exigências do Banco de Portugal

As provisões exigidas pelo Banco de Portugal ao BES são o foco do parecer. Há três grandes questões em análise: o papel comercial, a exposição do BES às empresas do Grupo Espírito Santo e a garantia estatal angolana.

O papel comercial

A 30 de junho de 2014, o BES tinha constituídas provisões de 757,8 milhões de euros para cobrir eventuais perdas com três linhas de obrigações emitidas por entidades do Grupo Espírito Santo. As perdas poderiam surgir caso os detentores das obrigações fizessem resgates antecipados.

O argumento é que “as potenciais perdas de 320,4 milhões de emissões de cupão zero e 360,4 milhões de outras emissões de muito longo prazo, que o BES pudesse vir a incorrer no futuro, em consequência da solicitação por parte dos clientes de retalho em liquidar os títulos em sua posse, não cumprem com os critérios para que sejam apuradas provisões”.

“A incerteza quanto às decisões que os mesmos poderiam vir a tomar de solicitar a recompra por parte do BES, o facto de ser um acontecimento contingencial fora do controlo do banco e não se conhecer o volume potencial dessa ocorrência, leva a que os mesmos devam ser classificados como passivos contingentes”, conclui-se, ao mesmo tempo que se defende que a constituição destas provisões não era “uma obrigação legal”, mas uma “obrigação construtiva”. Ou seja: se houvesse resgates antecipados, então o banco teria de constituir provisões; mas só depois disso, e nunca antes.

A exposição ao GES

No final do primeiro semestre de 2104, a exposição direta e indireta do BES ao GES ultrapassava os 2.825 milhões de euros. Numa carta dirigida nesse ano ao BES, o Banco de Portugal exigiu à instituição que constituísse “uma provisão prudentemente avaliada para acomodar os riscos assumidos” com esta exposição, “no valor mínimo de dois mil milhões de euros”.

Assim, a 30 de junho de 2014, o BES tinha constituídas provisões de 2.045 milhões de euros para cobrir os riscos associados à exposição ao GES.

Mais uma vez, o autor do parecer questiona o respeito pelas normas contabilísticas, argumentando que nem tudo o que é provisão deveria sê-lo. A exposição indireta ao GES — 641 milhões de euros ao papel comercial emitido pela Espírito Santo International e pela Rioforte, 420 milhões de euros à dívida de entidades do GES colocada no retalho e 267 milhões em cartas de conforto a entidades venezuelanas — também deveria ser considerada um passivo contingente, sem qualquer obrigação legal, mas com obrigação construtiva, argumenta o parecer.

Já em relação à exposição direta às empresas do GES — 1.497 milhões de créditos concedidos à Rioforte, à Espírito Santo Financial Group e ao grupo Escom — nem tudo deveria considerar-se provisões. Os créditos, a não serem cumpridos, deveriam ser considerados como imparidades; as garantias prestadas, em caso de incumprimento por parte do devedor, deveriam ser tidas como passivo contingente.

A exigência do regulador neste campo não pode ser considerada de prudente, “na medida em que ajudou a colocar o BES em situação de incumprimento dos rácios prudenciais“, argumenta o parecer. “Assim, em nossa opinião, a situação foi imprudentemente avaliada com implicações sobre todo o sistema bancário”, conclui, sobre este assunto, o parecer.

A garantia estatal de Angola

Em 2013, a República de Angola emitiu uma garantia soberana, até ao valor de 5,7 mil milhões de dólares, relativa a créditos concedidos pelo Banco Espírito Santo Angola (BESA) a um conjunto de empresas angolanas. A validade desta garantia foi reconhecida pelo Banco de Portugal.

Contudo, o regulador português não aceitou esta garantia como “meio de proteção pessoal de crédito e, dessa forma, um meio de redução do risco de crédito para efeito de apuramento dos rácios de capital”. Como o regulador não quis reconhecer esta garantia nos rácios prudenciais do BES — e apesar de nunca ter sido exigida a constituição de provisões para cobrir o eventual incumprimentos dos créditos concedidos em Angola –, o banco viu estes rácios caírem para os tais valores abaixo do mínimo exigido pela supervisão bancária.

Uma versão alternativa da história

Se o Banco de Portugal tivesse permitido a constituição de passivos contingentes em vez de provisões, e se tivesse reconhecido a garantia estatal de Angola, como ficariam, então, as contas do BES?

Em relação a Angola, o parecer conclui que “o não reconhecimento por parte do Banco de Portugal da garantia soberana de Angola para efeitos prudenciais afetou significativamente, de forma negativa, os rácios prudenciais de capital do BES”. Quanto à exposição direta e indireta ao GES, conclusão quase idêntica: “estas provisões afetaram, negativamente, o capital próprio e o rácio prudencial do BES”.

O parecer ressalva que não tem condições para “apurar o real impacto quantitativo desta política contabilística”, uma vez que o Banco de Portugal não apresentou os critérios em que se baseou para exigir provisões de dois mil milhões para cobrir os riscos associados à exposição ao GES.

Mas “conclusão geral” é que, tivessem os riscos sido registados como passivos contingentes ou imparidades, em vez de provisões, e tivesse a garantia estatal de Angola sido aceite pelo Banco de Portugal, todos os rácios prudenciais do BES ficariam acima dos mínimos exigidos:

  • Rácio core tier 1 ficaria em 9,4% (o mínimo era 4,5%);
  • Rácio tier 2 em 9,4% (o mínimo era 6%);
  • Rácio de solvabilidade ficaria em 11% (o mínimo era 10%).

“Não teria sido esta uma prática contabilística de bom senso?”, questiona o parecer.

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