Porque não se acaba com as offshores?

O ECO falou com fiscalistas para perceber se acabar com as 'offshores' pouco transparentes é viável e de que forma pode ser feito. Uma ação conjunta europeia ou global é improvável.

Mais do que uma questão nacional, este é um problema global. As offshores são um tema transversal aos quase 200 países que existem atualmente no mundo. Alguns desses Estados reconhecidos internacionalmente são a origem do problema servindo de refúgio para uma série de operações. Algumas são legais, muitas ilegais. Em Portugal, uma discrepância de dez mil milhões de euros nas estatísticas causada por um erro informático tornou-se num caso político. Mas muito milhares de milhões de euros multiplicam-se pelo mundo fora, parte sem rasto.

Primeiro é preciso distinguir dois casos. Existem regimes fiscais vantajosos em vários Estados, mas isso não significa que sejam paraísos fiscais onde a “legislação ou a prática administrativa não permita o acesso e troca de informações relevantes para efeitos fiscais”, tal como refere a Lei Geral Tributária. Ou seja, jurisdições onde existe falta de transparência e que, por isso, estão mais suscetíveis a serem utilizadas para fins ilícitos.

Caso diferente são os Estados onde existe um regime fiscal mais vantajoso, mas onde a informação é prestada e a tributação — ainda que reduzida — é feita. Poder-se-ia dizer que Portugal é, neste sentido, um paraíso fiscal para os pensionistas suecos, tal como apontou recentemente a ministra das Finanças da Suécia. Um argumento também válido para o Centro de Negócios da Madeira que apenas tributa 5% dos lucros, consoante certos critérios, ou para o IRC de 12,5% na Irlanda que já causou problemas na Apple.

É esta distinção que faz Patrick Dewerbe, da CMS Rui Pena & Arnaut, ao ECO: “Se por offshores se pretende referir as jurisdições que hoje em dia não implementaram quaisquer mecanismos de troca de informações e transparência relativamente à origem dos fundos e identificação dos beneficiários efetivos, então relativamente a essas, na base da sua utilização estarão apenas razões ilegítimas, não sendo defensável a sua existência”. Estes Estados são os que não implementam os mecanismos de transparência recomendados pela OCDE.

“Pelo contrário, se por offshores se pretende apenas referir jurisdições que tenham regimes fiscalmente mais favoráveis, entenda-se taxas reduzidas de tributação, a sua utilização, desde que acompanhada de motivações de natureza económica e empresarial e não apenas fiscal, constitui uma importante forma dos investidores estruturem os seus investimentos a nível mundial”, argumenta do sócio do departamento de fiscal da sociedade de advogados. Estas jurisdições estão, na sua opinião, no âmbito da “competitividade fiscal que deve ser encarada como uma vantagem dos países para captação de investimento”.

Até há relativamente pouco tempo é evidente que todos nós desconfiávamos que as operações com offshores traduzir-se-iam sempre em evasão fiscal. Atualmente tenho dúvidas.

Vasco Valdez

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Podem ainda existir situações em que empresas ou pessoas singulares têm clientes ou fornecedores que estão sediados em offshores. Neste caso, “ao pagarem determinadas operações têm de o fazer através do domicílio”, explica Vasco Valdez, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais quando Manuela Ferreira Leite era ministra das Finanças, entre 2002 e 2004. “Até há relativamente pouco tempo é evidente que todos desconfiávamos que as operações com offshores traduzir-se-iam sempre em evasão fiscal. Atualmente tenho dúvidas“, afirma o fiscalista.

Porquê? Valdez apresenta duas razões. A primeira está relacionada com a taxa de juro baixa praticada a nível mundial, pelo que não seria vantajoso ter dinheiro nas offshores para beneficiar de um juro remuneratório maior. Além disso, a tributação posterior também seria penalizadora. Essas operações podem ser legais, reconhece, e “corresponder a questões reais” relativas às empresas, mas o fiscalista relembra que os “riscos reputacionais” afastam a utilização deste mecanismo.

Isto acontece, por exemplo, em heranças e bens familiares. Já no caso da otimização fiscal, isso já não se verifica, pelo menos nas offshores com regulação mais apertada dado que as empresas acabam por ter benefícios que não compensam as obrigações. Nomeadamente no relacionamento com os seus clientes, diz Vasco Valdez, referindo-se à jurisdição portuguesa, que acompanha na generalidade as boas práticas mundiais.

Patrick Dewerbe também é da opinião que atualmente já está em andamento a extinção de offshores onde os mecanismos de troca de informações não existe. Porquê? “Aqueles que se recusem a implementar os mecanismos recomendados pela OCDE terão tendência a acabar, pois a sua utilização é cada mais sancionada por todas jurisdições“, esclarece o especialista. O especialista argumenta que existem medidas aplicadas “com sucesso” relativamente à origem dos fundos e identificação dos beneficiários efetivos, citado a FATCA, CRS e BEPS.

A questão, no entanto, está longe de ser simples. Mesmo entre especialistas o problema revela ter várias nuances, nomeadamente para as grandes empresas ou particulares com maior riqueza capazes de utilizar estratégias fiscais ilegais que fiquem fora do radar das máquinas fiscalizadoras dos Estados. É o caso da triangulação.

Problema está na falta de ação conjunta

Apesar de existirem acordos de troca de informação, há quem duvide da sua eficácia. Além disso, os protocolos nem sempre são cumpridos por todas as partes, revelando o conflito de interesses económicos e políticos de cada país. Mesmo com as guidelines da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico e a ação de alguns Governos por causa da crise financeira de 2008, ainda existe muito por fazer para apertar o cerco a operações ilícitas, tal como mostraram, no ano passado, escândalos de evasão fiscal como os Panama Papers, os Bahama Papers ou os Football Leaks.

Os especialistas contactados pelo ECO são unânimes em referir que só com troca de informação generalizada entre as principais economias e uma ação conjunta entre a União Europeia e os Estados Unidos é que o problema se resolve. É crucial saber o destino do dinheiro que circula para offshores, percebendo assim se esse Estado é opaco no tratamento da informação ou se tem transparência nos seus procedimentos administrativos.

Qualquer tipo de offshores pura e simplesmente deviam desaparecer.

Vasco Valdez

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

“Qualquer tipo de offshores pura e simplesmente deviam desaparecer”, afirma Vasco Valdez. “Não é por uma questão de natureza fiscal — pode ser — mas pela opacidade que está aí presente. Esse dinheiro que vai para a droga, o terrorismo, o tráfico de pessoas, passa por offshores. Não passa por uma conta aberta num banco nosso”, justifica. Mas para isso acontece devia haver um “boicote ativo” dos Estados. Mas será que esse é o objetivo dos Governos? “Para alguns será, mas para outros não”, responde o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Não será, por isso, Portugal sozinho a conseguir mudar. “Nem a União Europeia”, acrescenta Vasco Valdez, referindo a necessidade dos Estados Unidos se envolverem, assim como a China, a América Latina… “Em suma, algo concertado a nível mundial”, defende. Até porque uma solução isolada teria o risco de prejudicar a economia de quem utiliza esses instrumentos, ainda com o valor ético e moral do seu lado. “É esta a grande desculpa enquanto não houver uma contestação de todos os Estados contra as offshores“, admite o especialista.

Ainda assim, o ex-responsável pelos Assuntos Fiscais de Portugal reconhece que “houve um esforço enorme na OCDE” e também nos Estados Unidos, que “são intervenientes nisto tudo”, para que os dinheiros ilícitos fiquem fora das offshores. Contudo, admite também que não sabe se é fácil fazer isto integralmente. “Tem de haver uma vontade muito firme para acabar com isto”, diz, argumentando que não tem a ver com problemas político-filosóficos, mas sim com os interesses instalados, principalmente nos países onde não existe transparência e os dinheiros públicos são usados para fins privados.

As offshores eram aqueles escapes do sistema, como existem aquelas fugas nas placas tectónicas, para evitar males maiores.

Manuel Faustino

Fiscalista

“As offshores eram aqueles escapes do sistema, como existem aquelas fugas nas placas tectónicas, para evitar males maiores”. A frase é de um profissional do Fisco espanhol (um dos mais reconhecidos a nível internacional), dita num curso de fiscalidade e direito internacional. Quem a relembra ao ECO é Manuel Faustino, o pai do sistema do IRS em Portugal, referindo que “as offshores são legais”. “Se se declarar tudo o que lá se faz, do ponto de vista fiscal, não há problema rigorosamente nenhum“, afirma.

Enquanto fiscalista, o professor está preocupado em saber se os factos tributários que ocorrem nos paraísos fiscais são devidamente tributados. “Se o forem, em termos fiscais, não há nada contra as offshores. Enquanto fiscalista coloco-me nessa perspetiva”, explica Manuel Faustino. E, por isso, não vê razões para acabar com as offshores. “Do ponto de vista de outras finalidades, isso aí não nos cabe a nós fiscalistas pronunciar”, justifica, reconhecendo, no entanto, que “existe hipocrisia política em relação às offshores“.

A razão reside no conflito de interesses a vários níveis, nomeadamente dentro da União Europeia. O especialista deixa um questão: “Alguém vai transferir dinheiro para um paraíso fiscal sabendo que vai ser reportado às autoridades fiscais quando sabe que pode, para o mesmo efeito, transferir para a Suíça e depois para o paraíso fiscal e já não é reportado diretamente às autoridades fiscais?” Esta possibilidade de triangulação pode ser feita “por qualquer um”, avisa.

Ou seja, “se for para transferir algo sobre o qual existem telhados de vidro, não o vão fazer aqui através de bancos portugueses a não ser que sejam ceguinhos“, explica o fiscalista. Isto ocorre porque existe livre circulação de capitais na União Europeia, podendo assim o cidadão ou empresa transferir para o montante outro país da UE. Assim, terá “muito menos riscos”, diz. Porquê? Segundo Manuel Faustino, as normas de reporte fiscal “não existem em muitos lados, não é uma norma generalizada”. Contudo, reconhece também que a questão da “falta de transparência está cada vez mais posta em causa”.

Ainda assim, Faustino não está otimista em relação a um futuro acordo entre os países para acabar de vez com as offshores onde a transparência não existe. “A UE fará o que as multinacionais querem que ela faça. Não espero grandes coisas para este peditório”, confessa ao ECO. Em causa estão os interesses divergentes da União Europeia, o que a levará a “fechar-se em copas”. Além disso, mesmo quando são alcançados progressos, o fiscalista diz que residem “grandes dúvidas” nos meandro: “Quando vemos os pormenores sabemos que não é tudo igual em todo o lado”.

Existem dúvidas sobre a eficácia da troca de informação

Primeiro, é preciso existir uma suspeita. E, daí, um pedido de informação. “Hoje há de facto mecanismos que já dificultam muito a utilização das offshores, mas não sou muito crente que isto esteja muito melhor do que está“, confessa Vasco Valdez, perspetivando que a “tendência será outra vez reforçar as offshores por causa dos Estados Unidos”. Ou seja, de Donald Trump e as suas políticas económicas e fiscais de desregulação.

Mas Valdez vai mais longe na desconfiança. Em causa estão os acordos celebrados entre offshores e os países para que exista maior transparência e a troca de informação. “Tenho algumas dúvidas da grande transparência que exista relativa a todas as offshores“, indica, incluindo “mesmo as offshores que celebraram protocolo com os países da OCDE para trocar informações“.” Será que trocam mesmo?”, questiona. “Não tenho conhecimento suficiente para lhe poder dizer se essa prática já está tão rotinada… Se assim for desaparece completamente o interesse nas offshores“, argumenta.

E o que está fora do radar do Fisco?

Estas questões têm sido suscitadas frequentemente desde que a globalização avançou a todo o gás, mas um especialista na área refere ao ECO que sem os Estados Unidos, a maior economia do mundo, nada é feito. Ou se é, não tem eficácia. A questão crítica são outras transações que não passam por Portugal e dizem respeito ao país, como o exemplo já dado neste texto da triangulação.

Um especialista na área dá outro exemplo ao ECO: uma empresa com cinco mil euros de capital social e com ativos no valor de um milhão pode ser adquirida por alguém pagando os cinco mil euros em Portugal e depois um milhão através de uma offshore. Assim, esse montante foge ao imposto e nem sequer toca na jurisdição portuguesa.

Este é o tipo de situações que não consta sequer das estatísticas e que é de difícil identificação. Os sistemas informáticos — apesar de terem, segundo o atual secretário de Estado, Rocha Andrade, falhado nesta ocasião — estão gradualmente a ganhar sofisticação, mas ainda há um longo caminho a fazer. Uma fiscalização mais eficaz passará por modelos mais avançados de inspeção, prevenindo assim casos de evasão fiscal mais complexos. O mesmo especialista diz, no entanto, que Portugal é um caso de sucesso e que já existe um controlo rígido.

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