Quem tem ética passa fome? Os políticos têm que provar que não

Perderam-se centenas de milhares de empregos, empresas, casas de família, adiaram-se vidas como consequência provável de casos corrupção. Não chega como motivação para mudar o “sistema”?

Podemos continuar a fingir que o problema não é sistémico, que está circunscrito a meia dúzia de casos isolados e que é sobretudo a Justiça que tem que lidar com eles.

Essa é a forma errada e muito perigosa de lidar com a corrupção, assumindo-a como um custo inevitável que qualquer regime tem sempre que suportar. Teoricamente, é verdade. Em todo o lado há desonestos e corruptos dispostos a colocar os seus ganhos pessoais à frente dos interesses públicos.

Mas recapitulemos para não perdermos a noção da dimensão do fenómeno.

Temos a gravidade ímpar dos casos de que nos têm ocupado ultimamente — José Sócrates, ex-primeiro ministro e Manuel Pinho, ex-ministro da Economia. Mas já antes tivemos, com diferentes graus de gravidade e de prova judicial, os submarinos, os sobreiros, o BPN, os vários negócios feitos através da Caixa Geral de Depósitos, a Face Oculta dos robalos, os prédios dos CTT, a teia Espírito Santo, a Portugal Telecom e os Vistos Gold. As últimas notícias falam de investigações avançadas sobre Parcerias Público-Privadas e de suspeitas sobre os investimentos da Parque Escolar. A questão das rendas da energia também pode ainda dar pano para mangas, podendo nem estar directamente relacionada com os pagamentos que Manuel Pinho terá recebido do Grupo Espírito Santo enquanto era ministro.

São casos isolados a mais para não assumirmos que temos um grave problema de regime.

Todos estes casos envolveram entidades públicas ou tiveram protagonistas que eram ou tinham sido decisores políticos ao mais alto nível, alguns membros de governos.

Outra coincidência, ou talvez não: algumas das políticas públicas erguidas como “bandeiras” ao longo de anos estão aqui tristemente representadas.

  • Grandes investimentos em obras públicas? Presente (PPP).
  • Equipamento das Forças Armadas? Presente (submarinos).
  • Energias renováveis? Presente (rendas da energia).
  • Projectos de Interesse Nacional? Presente (financiamentos da CGD).
  • Educação? Presente (Parque Escolar).
  • Política de “campeões nacionais” e defesa dos centros de decisão nacional? Presente (PT e GES).

Obviamente que devem sempre existir políticas públicas na generalidade destas e de outras áreas mas o modelo e o voluntarismo com que por vezes são desenhadas, propagandeadas e praticadas podem ter mais a ver com interesses privados do que com bem público.

Se o conjunto de protagonistas, entidades e políticas aqui envolvidos não representam um regime, na sua estrutura e forma de funcionamento, então o que o representa?

Mais duas coisas que temos que ter sempre presente.

A primeira é que os casos a que a Justiça chega de forma suficientemente estruturada para constituir arguidos ou fazer acusações são sempre, por definição, uma pequena parte das verdadeiras ocorrências.

A segunda é que, como parece consensual, a Justiça passou por um período de grande passividade e só nos últimos anos se tornou mais actuante.

Isto deixa-nos muito espaço para imaginar que conhecemos apenas uma fatia estreita da realidade.

Outro dado. Com o que sabemos hoje, só um daqueles casos está directamente relacionado com o financiamento partidário (o caso dos sobreiros que envolveu o CDS). Esta é uma das zonas mais obscuras do tráfico de influências e troca de interesses públicos e privados. As campanhas eleitorais são caras e alguns partidos vivem notoriamente acima das suas possibilidades. Mas as contas têm que ser pagas. Como o são e a que preço é muitas vezes um mistério que continua por resolver.

Tudo isto devia ter já feito soar o alarme às lideranças políticas, presentes ou passadas, obrigando a uma actuação séria e eficaz que devia começar nas suas próprias “casas” — partidos, entidades públicas que gerem, Parlamento.

Mas é provável que isso seja exigir demasiado de muitas delas. Umas porque estão demasiado comprometidas com algumas daquelas práticas. Outras porque, embora não estando, sabem como funciona o “sistema” mas não sabem como se pode sair dele. É assim que a coisa opera há décadas, não sabem fazer ou permitir que se faça de outra maneira e temem perder influência, poder, votos, simpatizantes, meios ou espaço para fazer política se o “sistema” for desmontado e substituído por outro, que desconhecem e não dominam.

Pragmaticamente, isto acontece em muitos sectores. Diz-se que no futebol também é assim, ou se adoptam as práticas em vigor, por mais abjectas que possam ser, ou simplesmente nunca se terá sucesso “desportivo”. Tal como muitos empresários dizem que para entrar num ou noutro país têm que estar disponíveis para “pagar”. Se não pagam, simplesmente não fazem ali negócios. O que fazer se a concorrência avança nessas condições, começa a facturar, a lucrar e a conseguir uma posição que, no limite, ameaça a sobrevivência das suas empresas? Para quem gosta de adoptar práticas transparentes e correctas não será uma decisão fácil, trazendo sempre à memória a declaração lapidar de Teresa Guilherme: “quem tem ética passa fome”.

Mas da política e dos políticos espera-se e exige-se muito mais do que ficar prisioneira desta escolha. A nobreza da função, que tanto gostam de invocar, devia obrigá-los a actuar e, se preciso for, a mudar de vida e de “sistema”.

Há espaço para tudo.

Para a Justiça actuar, claro. De forma independente e até com meios reforçados pelo poder político. A PGR tem actualmente que parar umas investigações para dar prioridade a outras? Reforcem-se os meios. Para situações excepcionais, respostas excepcionais. E, afinal, quem não deve não teme, não é?

Também há espaço para um paralelo debate político e partidário, para as trocas de acusações e invocação dos eventuais “telhados de vidro” do vizinho. É isso que está a acontecer nas últimas semanas quando, tardiamente, se descobriu que havia um elefante na sala que durante anos se preferiu ignorar.

Mas nada disto pode impedir que, ao mesmo tempo, se atalhe caminho no combate a práticas instaladas que corroem de forma irreversível a confiança dos cidadãos no regime e nos seus protagonistas.

Estamos a falar de cidadãos que, na generalidade, pagaram e continuam a pagar a factura de um resgate financeiro do Estado e de entidades privadas. Já sabemos que uma parte significativa dessa factura decorreu directamente de casos de polícia — BES e BPN, por exemplo. E suspeita-se que do lado do Estado outros casos de polícia terão pelo menos acelerado e agravado a iminência da bancarrota. Ainda temos essas contas complicadas para fazer: o que foram políticas erradas e o que foram negócios públicos intencionalmente ruinosos porque alguém ganhou com eles?

Perderam-se centenas de milhares de empregos, empresas, casas de família, adiaram-se vidas como consequência provável de casos corrupção. Não chega como motivação para mudar o “sistema”? O que é preciso mais?

Mas para que a mudança de vida do regime possa ser levada a sério e percebida como sincera e produzir efeitos há que travar, antes de mais, a falência ética e moral exposta pelos pequenos casos: as golpadas nos pagamentos de quotas para as eleições primárias dos partidos, as tentativas vergonhosas de aumentar o financiamento partidário à socapa ou os esquemas a que alguns deputados recorrem com os subsídios parlamentares para aumentar os seus rendimentos.

Começando por aí, pelos tostões, e seguindo logo depois para os milhões, havendo genuína vontade política talvez se consiga travar e inverter a percepção sustentada em factos de que o sistema é genericamente corrupto e que “são todos iguais”.

O pior que pode acontecer a uma sociedade é habituar-se progressivamente à ideia de que essa é a normalidade. Como os sapos e a água quente, quando começar a queimar já será demasiado tarde.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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