O mundo é um lugar perigoso?

A decisão de Trump de retirar os EUA do acordo nuclear com o Irão, as evoluções do processo de desnuclearização da Coreia do Norte e a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre Manuel Vicente.

Muitos telespectadores simpáticos, que por vezes cruzo nas ruas, queixam-se de que recentemente não tenho dado o relevo a temas internacionais que era habitual acontecer na TVI 24 (onde o programa tinha quase o dobro do tempo). Uma desculpa poderá ser a intensidade dos temas nacionais.

Vejam-se apenas alguns dos mais recentes: a forma como o Presidente da República ameaçou o Primeiro-Ministro de o demitir se os fogos voltarem, falando de que se não candidataria se isso acontecesse nos próximos anos (e a maneira como o Primeiro-Ministro lhe respondeu); a forma como o Primeiro-Ministro subiu a parada sobre o Orçamento (demite-se se a gerigonça o chumbar no Outono, sendo claro que não aceita viabilizá-lo com o PSD); a sibilina entrevista de um toureiro sobre o facto do aficionado Marcelo Rebelo de Sousa ainda não ter ido a nenhuma tourada e este ano se comemorar os 100 anos do Campo Pequeno (e o que isto revela do populismo centrista do nosso Presidente…)

Mas concordo que desta vez os temas internacionais esmagam todos os outros.

Realço três: a decisão de Trump de retirar os EUA do acordo nuclear com o Irão, as evoluções mais recentes do processo de desnuclearização da Coreia do Norte e a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa Sobre Manuel Vicente e suas implicações nas relações com Angola.

E ainda poderia falar da telenovela catalã, do provável acordo de governo entre os dois partidos populistas em Itália como já acontecera na Grécia, das contradições no Brexit e da cada vez mais provável realização de um novo referendo, dos bombardeamentos israelitas de forças iranianas na Síria, da violência e mortes por causa da transferência da embaixada dos EUA para Jerusalém.

O caso do Irão

Comecemos pelo mais complicado e perigoso. A saída dos EUA do acordo nuclear de 2015 e a decorrente aplicação de sanções, o que não foi apoiado pelos outros países envolvidos.

Mas a história não acaba aqui. De acordo com a legislação norte-americana, há uma espécie de extraterritorialidade nessa decisão, em dois planos essenciais: um deles afeta todas as empresas americanas, pois elas não podem adquirir qualquer produto iraniano boicotado (como o petróleo) ou permitir que algum dos seus subprodutos seja incorporado em bens exportados para o Irão. A outra vertente é que qualquer empresa ou entidade que se relacione com o Irão fica proibida ou correrá elevados riscos financeiros se estiver presente no mercado americano.

Ou seja, mesmo que o Irão decida manter o acordo nuclear em vigor, os conflitos comerciais, financeiros e estratégicos com os membros europeus da OTAN serão provavelmente ingeríveis e têm tudo para provocar uma separação radical entre aliados. Como disse Merkel, “a Europa tem de agarrar o seu destino nas próprias mãos” visto que “a época em que podíamos confiar nos EUA acabou”.

Claro que Trump saiu do acordo nuclear com o Irão para reforçar a probabilidade de sucesso da reunião de Junho com o líder da Coreia do Norte. Se com os coreanos correr tudo bem, isto pode-se revelar uma mera tática, e umas pequenas cedências cosméticas do Irão poderão dentro de meses fazer retomar o acordo nuclear e Trump ficar como vencedor.

Mas o problema das técnicas negociais do imobiliário, quando aplicadas à política internacional, é que têm tudo para falhar, desde logo pelo caráter ideológico, nacionalista, reputacional deste último cenário. Mesmo que na Coreia tudo corra bem (e ainda mais se correr mal) esta decisão trumpiana, sobretudo tendo presente a aliança EUA/Arábia Saudita/sunitas/Israel e o seu caráter explosivo até em sentido literal, pode acelerar o que há meses referi como a guerra dos mares interiores na Eurásia.

A Coreia do Norte e o trumpismo

Os factos são o que são. Segundo parece, se as eleições presidenciais fossem hoje Trump voltaria a ganhar, começam a dizer sondagens credíveis.

O que ele parece estar a conseguir na Coreia do Norte é a principal razão dessa mudança, impensável há pouco tempo. Há meses o Economist, do alto do seu soft power e qualidade, prenunciava a possibilidade de uma guerra na Coreia em 2018 que podia ser nuclear.

Agora o desmantelamento da capacidade nuclear norte coreana vai começar e um acordo tornou-se mais do que provável; e, pasme-se, Trump começa nesse caso a ser falado para receber o prémio Nobel da Paz.

Uma estratégia negocial à beira do abismo pode funcionar por vezes. Sobretudo quando outros fatores se juntam a ela. Realço dois: Trump e o seu fascínio por homens fortes (tema que há meses tratei e que na passada semana era a capa da Time) com a implícita tese de que entre esse tipo de pessoas é mais fácil fazer acordos; e a preocupação da liderança da Coreia do Norte com a imposição da mudança de regime que teme venha da China. Para Kim-Jong-un, talvez o urso americano seja uma forma de evitar o abraço forte demais do urso chinês.

Seja como for, não será exagero dizer o que se passar na cimeira de 12 de junho em Singapura pode influenciar mais a cena internacional e a paz no mundo mais do que qualquer outro fator.

Não é de afastar, e insisto que é essa a minha mais firme convicção há tempo suficiente para disso já ter falado várias vezes, que o Mundo se pode estar a aproximar de uma situação semelhante à da Balança de Poderes na Europa que se seguiu à paz de Vestefália de 1648.

Ou seja, líderes poderosos com apoio popular e beneficiando de um sistema democrático anti-liberal, talham esferas de influência com o acordo dos outros e um equilíbrio multipolar se criará, com os EUA a desempenharem a função da Inglaterra no século XVII e seguintes, e assim que apenas intervirá se e quando uma das potências queira alterar o equilíbrio e apenas para o restabelecer.

O problema é que em regra estas soluções acontecem depois da exaustão da violência, destruição e mortes (os 9 milhões de mortos na Guerra dos 30 anos tornam-na em percentagem da população talvez a mais mortífera dos tempos modernos) e não como forma de a evitar.

Sendo assim, EUA, Rússia, China, Turquia, India (e noutro plano Irão, Arábia Saudita, Coreia do Norte, Filipinas, Israel) talvez só possam fazer a Paz de Vestefália que desejem depois de uma guerra de 30 anos que não parecem temer. Esse o receio que devemos ter.

E Angola aqui tão perto

A recente decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de enviar para Luanda o processo criminal de Manuel Vicente por suspeitas de corrupção, permite ser decidido ali aplicar de imediato uma amnistia, aguardar a hipótese de no processo em Lisboa se não provar que houve corrupção ou que ele não participou em atos de corrupção, ou esperar por 2022 para o julgar … e aplicar a amnistia.

Era o que eu previa quando em janeiro abordei o assunto. Mas a melhor explicação do que se passou foi o que disse o melhor comentador político da 3ª República, Marcelo Rebelo de Sousa: “quando estão em causa centenas de milhar de pessoas, isso é tão forte, tão forte, tão forte, que é mais forte do que tudo”.

Que o Supremo Magistrado da Nação Marcelo Rebelo de Sousa viva em união pessoal com o comentador do mesmo nome seria uma complicação … se Portugal não fosse um país de tão brandos costumes.

O que não significa que ele não tenha razão. No plano da política internacional o Direito tem limites que não consegue ultrapassar, como por exemplo quando o então juiz Garzon queria julgar Pinochet.

Era natural que tudo terminasse assim, mas poderia não ter sido. Claro que alguns dirão (sobretudo no Ministério Público) que isto é a prova de que uns são mais iguais do que outros, ou seja que a Justiça não tem os olhos completamente vendados. Mas a verdade é que se os tivesse totalmente tapados já teria caído pelas escadas abaixo dos tribunais, o que felizmente não creio que tenha vez alguma acontecido.

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