O avô rico de José Alvalade e as contas por pagar do Sporting

Ter capitais próprios negativos é razão suficiente para um auditor emitir um alerta tão dramático para uma eventual falência da SAD? A história das contas do Sporting, que começou com um avô rico.

A PwC é a empresa que faz a auditoria às contas do Sporting e esta semana surpreendeu meio mundo ao afirmar que a onda de rescisões dos jogadores mais valiosos do clube constitui uma “ameaça concreta em relação à continuidade das operações da Sporting SAD”.

“Ameaça à continuidade das operações da Sporting SAD” é um eufemismo, no jargão dos revisores de contas, para avisarem que a empresa corre o risco de falir.

Perante as rescisões das estrelas do Sporting como Rui Patrício, Bas Dost, Gelson Martins ou Bruno Fernandes, a PwC refez as contas e reviu em baixa o valor dos ativos da SAD em 16,5 milhões de euros, o que naturalmente faz baixar o valor dos capitais próprios em igual montante. Se, a 31 de março, os capitais próprios eram de 7,5 milhões de euros, agora são de 9 milhões de euros negativos.

A PwC retirou 16,5 milhões de euros à rubrica dos “Ativos intangíveis – Valor do plantel”.

Chegar à conclusão que os capitais próprios passaram de positivos a negativos é razão suficiente para um alerta tão dramático por parte da PwC? Não, não é. Metade das empresas do país têm capitais próprios negativos e a outra metade viola o artigo 35 do Código das Sociedades Comerciais (capital próprio igual ou inferior a metade do capital social). Mesmo no futebol, há clubes grandes que fecharam o ano com uma situação líquida negativa. É o caso, por exemplo, do FC Porto com mais de 33 milhões de euros negativos.

Então qual a razão para tamanha dramatização por parte da PwC em relação às contas da SAD do Sporting? É um exagero? É excesso de zelo? É birra de auditor? Não gosta de Bruno de Carvalho? Não, é algo mais.

Este alerta da PwC só se consegue perceber se consultarmos as últimas contas auditadas da SAD, referentes ao primeiro semestre da época desportiva 2017/2018. Neste documento, na última página, existe uma nota do mesmo auditor (uma ênfase, em linguagem jurídica) em que a PwC alerta para a enorme discrepância do passivo corrente que supera largamente o valor dos ativos correntes.

A PwC diz que o passivo corrente (164,8 milhões em março) é muito superior ao ativo corrente (36,6 milhões).

No entanto, a auditora dá o ‘ok’ às contas já que considera que “as demonstrações financeiras foram preparadas com base na continuidade das operações [o tal jargão], a qual se encontra dependente:

i) do apoio financeiro dos acionistas;

ii) da rentabilidade futura das operações;

iii) e do cumprimento do plano de reestruturação financeira contratualizado em novembro de 2014 com os bancos financiadores”.

Em linguagem simples, o que a PwC está a dizer é que os ativos da SAD não conseguem libertar cash suficiente a curto prazo para pagar os compromissos mais imediatos que são em valor muito superior. Então porque é que o auditor “aprovou” as contas? Precisamente porque assumiu que a verificação desses três pressupostos vai ajudar a equilibrar as contas no futuro, na tal lógica de continuidade.

Ao afirmar agora que a “continuidade das operações da Sporting SAD está ameaçada”, é porque a PwC acha que um (ou, eventualmente, todos) dos pressupostos não vai ser cumprido. E se calhar tem razão. Vamos a eles.

i) apoio financeiro dos acionistas;

Nesta altura de turbulência, que investidor é que vai injetar dinheiro no clube? Recorde-se que, no plano de reestruturação combinado com a banca, o Sporting já deveria ter encontrado um investidor que injetasse 18 milhões de euros. Não encontrou, – ainda numa altura em que a situação do clube era calma e serena – e o Novo Banco resolveu adiantar os 18 milhões a troco de um juro simpático de 1%. Até agora ainda não aconteceu o tal aumento de capital para devolver o dinheiro ao Novo Banco.

ii) rentabilidade futura das operações;

Sendo um clube desportivo, a rentabilidade futura naturalmente depende dos sucessos desportivos e da capacidade de monetizar esse sucesso, seja através de bilheteira, venda de jogadores ou participações em provas como a Liga dos Campeões. O problema é que nesta altura os nove jogadores que o Sporting perdeu têm um valor de mercado que ronda os 150 milhões (Fonte: Transfermarkt), ou seja, cerca de 63% do valor do plantel. E ao rescindirem não podem jogar (e contribuir para o sucesso desportivo) e não podem ser vendidos (contribuindo para o sucesso financeiro).

Bruno de Carvalho, à CMVM, diz que apesar das rescisões, a SAD “continua a dispor de direitos desportivos e federativos sobre um leque considerável de jogadores profissionais de futebol”. Ou seja, perde qualidade, mas garante que tem quantidade.

Além disso, o presidente da SAD tenta acalmar os sócios e acionistas, dizendo que “é expectável que tais rescisões […] determinem uma descida acentuada dos gastos com pessoal”. Ou seja, perde os jogadores, mas também já não tem de lhes pagar os salários. Esta é a lógica de alguém que acaba de perder a casa num terramoto, mas que está aliviado porque já não vai ter de pagar a conta da água e da luz.

iii) cumprimento do plano de reestruturação

O plano de reestruturação prevê, entre outras coisas, que a SAD reserve parte do dinheiro que conseguir com a Liga dos Campeões e com a alienação de atletas para recomprar os VMOC (dívida à banca que foi transformada em valores convertíveis em ações).

Aliás, todo o balanço da SAD está alavancado nestes VMOC que estão a “tapar” anos e anos consecutivos de prejuízos.

São os VMOC que impedem que a SAD tenha um capital próprio negativo superior a 100 milhões.

Ora, tendo em conta que o Sporting ficou fora da Champions e que já não tem os jogadores mais valiosos para vender, lá se vai o pé-de-meia para pagar os VMOC.

Toda esta turbulência financeira está a acontecer numa altura em que a SAD não está a conseguir sequer ir ao mercado para vender 15 milhões de dívida para gastos de tesouraria e muito menos emitir os 35 milhões de euros de novas obrigações para reembolsar os credores em novembro, correndo assim um risco de default.

O futuro da SAD do Sporting está assente neste tripé – i) apoio financeiro dos acionistas; ii) rentabilidade futura das operações; e iii) cumprimento do plano de reestruturação financeira – que está a tremer como varas verdes. Aqui chegados, creio que se percebe por que razão é que a PwC se assustou com as contas do Sporting.

Reza a história que em 1906, um senhor, de seu nome José Alvalade, abandonou a associação desportiva Campo Grande
Foot-Ball Club e fez a seguinte promessa: “Vou pedir dinheiro ao meu avô e ele me dará dinheiro para fundar um outro clube”. E assim nasceu o Sporting.

Bruno de Carvalho também tem um avô rico?

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