Os desvios financeiros nas obras públicas

A opinião geral é que as empreitadas de obras públicas têm sempre desvios elevados, que há uns “malandros” que “enchem os bolsos”, com derrapagens financeiras.

As obras públicas de contratação tradicional (as chamadas “empreitadas públicas) vão desde a construção de estradas e pontes, a escolas, hospitais, centros de saúde, mas também estádios de futebol para o Euro, centros de cultura (como o CCB e a Casa da Música), e obras mais pequenas, feitas pelas autarquias, em pavilhões, rotundas, etc.

Trata-se de uma realidade que, durante muitos anos, ocupou uma parte importante da gestão pública, dado o baixo nível de infraestruturas que o país tinha nos anos 80, e que após 1986 foi sendo progressivamente reduzido. Hoje temos um país que, regra geral, tem infraestruturas de boa qualidade e com um grau de cobertura da população elevado. Claro que há alguma variação entre setores: estradas, águas e saneamento estão um pouco melhores que saúde e educação.

Contudo, a opinião geral é que as empreitadas de obras públicas têm sempre desvios elevados, que há uns “malandros” que “enchem os bolsos”, com derrapagens financeiras. No entanto, a realidade é bastante diferente.

Primeiro, não duvido que o planeamento de uma obra, mesmo bem feito do ponto de vista de engenharia, possa ter imprevistos e fatores contingentes, que não seriam possíveis de prever antes de a obra começar. Por exemplo, a autoestrada do Baixo Alentejo (feita por privados em regime de concessão) deparou-se com dezenas de achados arqueológicos, que eram naturalmente desconhecidos no momento do planeamento e conceção da obra.

Depois, a literatura internacional mostra que os desvios nas obras públicas tendem a existir como regra (ver por exemplo aqui ou aqui). Em média, as obras públicas apresentam desvios financeiros em torno dos 30% (sendo que a literatura mostra também que 8 a 9 projetos em cada 10 tendem a ter desvios financeiros). Note-se que os desvios são medidos em percentagem, para ser possível comparar projetos de diferentes dimensões. Do ponto de vista da eficiência, um projeto de 100 M€, com uma derrapagem de 1M€, teve um desvio de 1%. Um projeto de 100 mil €, com uma derrapagem de 50 mil €, teve um desvio de 50%.

Curiosamente, não há evidência na literatura internacional de que os desvios tenham-se reduzido ao longo do tempo (o que seria esperável dado a curva de aprendizagem e melhores tecnologias). Mas o que os estudos académicos mostram é que o valor de 30% tem sido relativamente constante nas últimas décadas.

As principais causas para estes desvios resultam da própria característica do projeto (o tal fator de incerteza que rodeia qualquer planeamento em qualquer área). Mas há fatores exógenos que potenciam estes desvios financeiros.

  1. O primeiro é um comportamento oportunista do decisor público, que anuncia a obra mais barato do que aquilo que ela vai custar, para efeitos de promoção política e captura de votos, mas também para ver a obra ser aprovada (dadas as restrições orçamentais, um custo maior poderia levar a uma rejeição do projeto, enquanto que depois de iniciada a obra, é mais difícil cancelá-la, até por via da pressão dos interessados na mesma).
  2. Por outro lado, mudanças no projeto por decisão política geram “trabalhos a mais”, o que naturalmente encarece a obra. Há aqui também algum “optimist bias”, e que é natural, sobretudo no setor público, menos habituado a avaliar e gerir riscos.
  3. Já a dimensão do projeto é mais controversa: por um lado grandes projetos são mais complexos, tendo maior risco, pelo que deviam ter maiores desvios. Por outro lado, são mais controlados e têm melhor know-how disponível, pelo que os desvios deveriam ser melhores. Aqui a literatura internacional têm-se dividido.

Relativamente a Portugal, publiquei em 2016 um paper no “Public Works Management and Policy” que analisa os desvios financeiros de 243 projetos de obras públicas (entre 1999 e 2012) que foram auditados pelo Tribunal de Contas, sendo os valores retirados de relatórios do Tribunal. Entretanto, tenho um aluno de doutoramento a trabalhar numa base de dados com quase 5 mil projetos, também auditados pelo Tribunal de Contas, e que vai dos anos 80 até 2016. Será interessante dentro de algum tempo comparar os resultados desse trabalho com os do meu paper.

Mas que conclusões foram possíveis extrair relativamente a Portugal? A primeira é que o desvio médio ponderado ronda os 30%, estando em linha com o “benchmark” internacional. Há naturalmente projetos com desvios muito elevados (Ponte D. Isabel em Coimbra, Estádios do Euro, Casa da Música, Estação de metro do Terreiro do Paço, etc). Mas são a exceção, por regra as obras públicas têm desvios financeiros baixos. Contudo, por regra também têm desvios (8 em cada 10 projetos apresentou um desvio financeiro)

A segunda conclusão é que os desvios têm sido superiores em projetos desenvolvidos pela Administração Central do que em projetos desenvolvidos pelas autarquias e pelas regiões.

Em terceiro, os maiores desvios tendem a acontecer em grandes projetos (como referi atrás), o que pode indicar alguma incapacidade do Estado em desenvolver este tipo de obras.

Em quarto lugar, anos de eleição legislativa são um desastre: tendem a aumentar significativamente os desvios financeiros. Embora a amostra não cobra o período da “troika”, fica a ideia que até 2011 os governos, em anos eleitorais, tendiam a gastar mais para inaugurar mais cedo, novamente numa lógica de captura dos votos.

Por último, usando variáveis de controlo de governação pública (tais como o nível de corrupção, o rule of law ou a experiência do setor público), é possível constatar que uma melhor framework legal e uma administração pública mais capaz tendem a reduzir os desvios financeiros.

No final, a amostra de 243 projetos durante 14 anos, com um desvio em torno dos 30%, representou ainda assim um desvio financeiro de cerca de 800 M€. Muito dinheiro dos contribuintes que devia ter sido e que no futuro tem de ser mais bem usado!

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