A gangrena política

A amputação de Sócrates tem tudo para falhar, pois é inegável que ele nunca foi apenas uma extremidade no PS, antecipa José Miguel Júdice no seu comentário semanal na TVI.

Foi curioso ver como o tema de Sócrates a “riscar-se de sócio” e do abandono dele pelo PS (não) foi tratado nos jornais chamados de referência (Público, Diário de Notícias e Jornal de Noticias) este domingo e já no sábado muito discretamente por dois deles… São critérios editoriais que devem ser excelentes por terem sido seguidos por todos. Mas que, manifestamente, o Presidente da República não seguiu, ao dar uma entrevista que evidentemente por isto foi motivada.
E eu também ouso discordar. Porquê?

Um sismo com elevada magnitude

O abandono de Sócrates pelo PS (também se pode dizer “deixar cair”), que realmente causou o abandono do PS por Sócrates, é um facto político com elevada dimensão e provavelmente com muito sérias consequências. É um abalo sísmico muito forte e, como sempre acontece, propício a sequelas ou réplicas.

Não se trata agora da questão – que eu já referi há dias na TVI24 – do PS ter reagido tarde ou cedo demais. Mas, de facto, ou o deveria ter feito pelo menos logo após a divulgação da acusação do Ministério Público (MP) ou deveria ter esperado ao menos pela pronúncia do Juiz de Instrução.

Também se não trata de falar sobre a razão de isto ocorrer agora, pois isso é totalmente evidente: A comoção da opinião pública sobre Manuel Pinho foi lida pela elite do PS como um risco de gangrena política. De imediato tentaram cortar essa parte do corpo, não sem lembrar que se tratava de um mero implante, pois ele não era um militante socialista. Cortar Sócrates revelou-se, depois, inevitável porque a opinião pública podia passar a tratar o PS como um corpo todo ele gangrenado. E vários comentadores deram de imediato esse passo.

E também não se trata de ser verdade a gangrena do PS. E ainda menos, se fosse verdade, que fosse situação nova e exclusiva: quem não se lembra dos ‘dream boys’ do PSD de Cavaco (como Dias Loureiro, Duarte Lima, Oliveira e Costa e tantos outros)? Mas não faz sentido dizer que os partidos são objetos putrefactos, que as máfias os captaram, ou que por elas são manipulados. Mas também não basta dizer que António Costa é sério, pois Cavaco também o é a um nível do mais elevado que existiu na democracia portuguesa.

E nem se trata de dar o devido relevo político ao facto de Sócrates não ir ficar quieto e dos adeptos de António José Seguro voltarem à cena política (basta ler o artigo de António Galamba no fim de semana). Isso é normal, foi por certo antecipado, e o PS está a preparar-se para isso. Mas, então, porque é que o tema continua vivo?

A gangrena política

Creio que a resposta é fácil. Voltemos então ao tema da gangrena. Os antibióticos para a gangrena política não existem, ou são muito fracos ou as bactérias tornaram-se muito resistentes. Por isso, apenas os métodos preventivos ainda funcionam (limpeza imediata da zona infetada, tratamento de doenças autoimunes, evitar traumas físicos e queimaduras, tratar bem a irrigação sanguínea; e ter também cuidado com as cobras…).

Como se fazia ao longo de séculos com os seres humanos, a conclusão é que o método mais eficaz contra a gangrena política continua a ser a amputação. Isso é verdade, mas não funciona sempre: Por exemplo, não se pode ainda amputar o cérebro, o coração ou o fígado. E mesmo em relação a extremidades (braços e pernas), as demoras e hesitações podem levar a que não seja viável a intervenção a partir de certa altura.

A amputação de Sócrates tem, por isso, tudo para falhar, pois é inegável que ele nunca foi apenas uma extremidade no PS. Se falhar, apenas vai acentuar o processo de gangrena no corpo socialista. E já vimos que o amputado pode começar – ainda que apenas estrebuchando – a apontar para outros órgãos amputáveis, como se passasse a ser uma espécie de bactéria ou foco autoimune …

Mas há pior. Como saberão, a água e o potássio não são um problema, mas se forem juntas a reação é explosiva. Na política, também há isso: A lógica férrea do combate político vai funcionar como o potássio. A vontade dos media em disseminar suspeições, como a água.

Todos vão por isso acusar todos e tudo será divulgado para uma opinião pública preparada para evitar este fogo, como vimos que as florestas (não) estavam em Portugal para os incêndios.

Não digo que isso seja inevitável. Mas, como antigamente se dizia, o cheiro a enxofre é sinal de que o Demónio está perto. E basta o cheiro a esta mistura explosiva para que ela venha a cumprir o seu destino. E para piorar tudo, admito que uma linha estratégica da defesa de Sócrates – a chamada teoria “cadê os outros?” – possa ser um catalisador ou um acelerador desse tipo de reações. E, mais uma vez, quero dizer que posso estar enganado, claro. E o violento artigo de Fernanda Câncio no DN de hoje (segunda-feira) é uma boa ajuda para todos os que venham a dizer que não sabiam de nada quanto a comportamentos tipo.

Cantinho das tontices

O Governo – que quer acabar com o ensino privado gradualmente – assegurou aos sindicatos que os professores das escolas privadas não seriam admitidos a um concurso para mobilidade interna, que assim ficou reservado para os professores das escolas públicas.

Salazar defendeu que Portugal devia permanecer “orgulhosamente só”.

A estatal Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) protestou vivamente contra a estatal Agência para a Gestão Integrada de Fogos Florestais (AGIF) por ela ter contratado peritos internacionais: isso será uma ofensa à Pátria, “um atestado de incompetência aos quadros nacionais”.

O Presidente da República vetou a lei que permite o uso de bicicletas partilhadas em Lisboa para proteger os pequenos negócios de aluguer de bicicletas no Campo Grande.

Acham que são tudo notícias falsas? Não, só uma é falsa, mas João Taborda da Gama usou-a para falar do veto presidencial à lei da Uber.

Lembro-me que quando era miúdo os jornais publicavam dois desenhos que tinham algumas diferenças difíceis de encontrar. Entre estas quatro notícias é ainda mais difícil descobrir as diferenças…

Como eu dizia há uma semana, Ribeiro Sanches continua a ter razão, quase três séculos depois, pois persistem as “dificuldades que tem um reino velho para emendar-se”…

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