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Ideias desta frente eurocéptica não agradam ao statu quo. Mas estão fortemente legitimadas pelo voto democrático em Itália. Por isso, a vontade política que segura o projecto europeu está ameaçada.

Que bagunça! A situação em Itália está ao rubro e nos mercados também. As bolsas e o euro afundaram, e os juros dispararam. Sinal do stress financeiro, a curva de rendimentos (yield curve) da Itália está prestes a ficar invertida. As taxas de juro a dois anos, que ainda há um mês negociavam em valores negativos, estão agora a aproximar-se de 3% e, a este ritmo, rapidamente ultrapassarão os juros exigidos a cinco e a dez anos. É, pois, de esperar o pior, sobretudo numa altura em que já se percebeu que a reacção do presidente Mattarella, de recusar a escolha da coligação 5 Estrelas-Liga e em seu lugar nomear um ex-FMI, fez simplesmente ricochete. As sondagens confirmam a inevitabilidade de eleições antecipadas, bem como o reforço da maioria parlamentar que aqueles dois partidos já representam hoje. Posto isto, levanta-se um problema: como enquadrar uma maioria parlamentar tão adversa ao euro num país tão sistemicamente relevante para a moeda única?

A minha resposta à questão anterior é: Muito dificilmente. Mas a situação não me surpreende nada porque já em Dezembro de 2016, após a demissão do então primeiro ministro Matteo Renzi, publiquei aqui no ECO um artigo intitulado “Arrivederci euro” no qual caracterizei a situação italiana como sendo o princípio do fim do euro. Ora, a evolução política em Itália desde então resultou na legitimação democrática desta frente eurocéptica. Uma legitimidade que, a avaliar pela subida das intenções de voto nos partidos ditos-populistas, continua a aumentar dia após dia. Uma legitimidade que, num país como a Itália, dificilmente permitirá a acomodação de tácticas intimidatórias do género votem-novamente-até-acertarem-na-escolha-certa.

Não nos equivoquemos. A Itália é uma economia de 1,7 triliões de euros (utilizando a escala longa), é a terceira maior economia da zona euro e é um dos países fundadores do que é hoje a União Europeia. Foi em Roma que aquela foi fundada em 1957 e foi em Roma que no ano passado se celebrou o seu sexagésimo aniversário. Será difícil fazer bullying com a Itália e, ao mesmo tempo, uma Itália contra a União Europeia não deixará de representar uma ferida de morte.

A Itália está em crise há muitos anos. Em face disso, a taxa de crescimento potencial do seu PIB é hoje próxima de zero. A produtividade está estagnada. A divergência entre norte e sul é enorme. As instituições não funcionam. O desemprego jovem é maciço. A estrutura demográfica é dramática. E os problemas, que em boa medida são semelhantes aos problemas portugueses, embora numa escala de grandeza muito maior do que a nossa, têm sido intensificados pela paralisia política, por uma classe política incapaz de reformar a justiça ou o mercado de trabalho.

Vale hoje à Itália que, apesar de tudo, em particular no norte do país, existe ainda uma economia privada, de pequenas e médias empresas e algumas multinacionais de renome, que a vai mantendo à tona da água. Mas há fardos formidáveis. A dívida pública é um desses fardos. O crédito bancário incobrável é outro fardo. Em conjunto, numa economia que não cresce, ambos fazem com que a Itália seja um acidente à beira de acontecer. Não é exagero.

A dívida pública italiana é de 130% do PIB. Em termos nominais, é a maior da zona euro. É facto que está bastante concentrada nas mãos de investidores residentes, reduzindo a dependência italiana face a credores externos. Ainda assim, cerca de 40% do total está repartido entre o Banco de Itália e o conjunto de bancos comerciais italianos. Em conjunto, os bancos, incluindo o banco central (que representa aqui o Banco Central Europeu), possuem em carteira cerca de 700 mil milhões de euros em dívida pública italiana.

Quanto ao crédito bancário malparado, as estatísticas oficiais apontam para um volume de 185 mil milhões de euros – 11% do total de crédito concedido. Contudo, a título de comparação, o rácio equivalente em Portugal é de 16% do total, o que me leva a suspeitar que as estatísticas oficiais em Itália possam estar subestimadas. Não seria surpreendente. Além disso, é também de contar que, em tempo de crise, o que é tido como bom pode tornar-se mau e o que já é tido como mau tende a tornar-se péssimo. Por outras palavras, a qualidade dos activos é influenciada pela direcção do próprio ciclo económico e financeiro. E o ciclo em Itália parece agora bastante negativo.

Paolo Savona, o tal que o presidente Mattarella rejeitou há dias para ministro da Economia, afirmava que pretendia cumprir as regras de Bruxelas e de Maastricht, mas sem reduzir a despesa pública nem aumentar os impostos. As metas orçamentais seriam atingidas através do crescimento económico, antecipando-se assim o cenário de uma expansão orçamental. O mesmo é dizer que os ditames de Bruxelas, que hoje em dia vão ao ponto de estabelecer limites ao crescimento nominal da despesa pública, dificilmente seriam respeitados. O objectivo seria, portanto, tirar o animal da jaula, a jaula alemã (“German cage”) do euro à qual no passado Savona se referiu. Mas há mais. Nas últimas semanas, a coligação 5 estrelas / Liga também havia veiculado a possibilidade de emitir dívida pública de curto prazo (através de instrumentos designados como “Mini BOTs”) que servisse para regularizar pagamentos atrasados do Estado italiano aos seus fornecedores privados – cerca de 30 mil milhões de euros. Estes instrumentos de dívida seriam depois transacionáveis em mercado secundário, podendo ser utilizados pelos seus detentores para saldar dívidas fiscais ao Estado. Na prática, e de forma muito sagaz, os “Mini BOTs” transformar-se-iam numa moeda paralela ao euro. Seria começar a sair do euro sem formalmente o fazer.

É evidente que as ideias desta frente eurocéptica não agradam ao statu quo. Mas elas estão fortemente legitimadas pelo voto democrático em Itália e, sendo assim, a vontade política que segura o projecto europeu, o cimento que até hoje evitou a implosão do euro, está ameaçada. Com uma agravante: ao BCE, para o qual todos vão olhar numa situação de último recurso, restam poucas armas.

Nos últimos anos, o BCE injectou quantias extraordinárias de dinheiro na economia da zona euro e pelo caminho subverteu por completo os prémios de risco. Em simultâneo, adquiriu volumes maciços de certos activos financeiros que noutras circunstâncias jamais fariam parte do seu balanço. Bem vistas as coisas, em matéria de política monetária, quem foi posto na jaula foram os alemães e todos aqueles que sentiram na carteira a repressão financeira dos juros negativos.

Imagine-se agora o que seria se o BCE, a fim de resgatar aqueles que querem acabar com a ordem económica e financeira do euro, tivesse que intensificar o recurso a medidas não convencionais. Seria o pandemónio. Além do mais, é provável que o BCE esteja hoje numa posição mais frágil do que aquela em que aparenta estar, sobretudo se de ora em diante tiver a Itália a pedir-lhe cancelamentos de dívida dia sim, dia não. Em suma, a implosão está em curso e em desenvolvimento. Resta saber se será controlada ou se será súbita.

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico

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