• Entrevista por:
  • Helena Garrido e Paula Nunes

“Precisamos é de competência. Independência temos tido muita” no Banco de Portugal

A proposta de reforma do modelo de supervisão financeira merece nota globalmente positiva, mas com algumas reservas sobre a nomeação do governador.

É a primeira parte da entrevista ao ECO de Francisco Louçã, hoje conselheiro de Estado e membro do conselho consultivo do Banco de Portugal. Falámos sobre a proposta de reforma do modelo de supervisão financeira na qual participou indiretamente com contributos prévios à constituição do grupo de trabalho liderado por Carlos Tavares. Francisco Louça elogia o modelo que está previsto mas manifesta reservas quanto à nomeação do governador do Banco de Portugal pelo Presidente da República. É a partir deste tema que a conversa se desenrola para a independência dos bancos centrais, matéria sobre a qual Louçã é muito crítico. Ainda sobre a proposta de Carlos Tavares defende que a entidade de resolução deve ter mais massa crítica do que parece estar previsto.

Como tem sido a sua experiência como membro do Conselho Consultivo do Banco de Portugal? Nas entrevistas que deu na Primavera disse que gostaria de contribuir para melhorar a supervisão.

O Conselho Consultivo é um órgão estatutário do Banco de Portugal, de pessoas que não são funcionárias do banco que não têm remuneração, nem nenhuma atividade regular dentro do banco. Reúne duas vezes por ano. A primeira para apreciar o relatório e contas e que me apercebi que a tradição significava que “apreciar” não era propriamente emitir um parecer, era tomar conhecimento. O que é uma função bastante passiva. E depois terá uma segunda reunião para acompanhamento e essa reunião não se realizou. Portanto, entrei uma vez no Banco de Portugal até agora. A sua administração enviou-me os documentos que pedi e solicitei. Mas o Conselho Consultivo está concebido para ser um fórum de antigos governadores e de alguns especialistas sem uma intervenção ativa no desenvolvimento do banco.

Ficou um bocadinho frustrado?

É menos do que eu creio que seria útil para ter uma visão distinta daquela que é o dia-a-dia da administração e que pudesse ajudar a resolver problemas chave de supervisão bancária. Entretanto, há um debate sobre o modelo de supervisão, que é um pouco independente do Banco de Portugal…

E é o que está a marcar a atualidade. O que pensa dessa proposta de reforma do modelo de supervisão bancária?

Eu elaborei com o Ricardo Cabral um parecer, entre vários especialistas, que fizeram propostas sobre os modelos de supervisão.

A pedido de Carlos Tavares?

Não, não. A pedido do Ministério das Finanças. Só depois dessa primeira fase de consulta é que foi formada a comissão do Dr. Carlos Tavares que elaborou o seu relatório. Estive na apresentação e parece-me um trabalho sério, consistente, bem pensado, sólido, porque corresponde já a uma proposta de lei, que será depois definida pelo Governo. A ideia de que as funções de supervisão e de resolução têm que ser separadas parece-me absolutamente essencial.

E consensual?

Razoavelmente consensual, face aliás a uma experiência de resoluções conduzidas pelo Banco de Portugal com grande impreparação, grande falta de formação, porventura vítima das manipulações contabilísticas que tinham ocultadas as contas verdadeiras de alguns impérios bancários. Mas a resolução foi feita em várias etapas, o que já por si representa que foi incompleta, insuficiente e, portanto, pouco eficaz.

Está a referir-se ao caso BES?

Ao BES e depois a nova resolução do Novo Banco. Na verdade, foram 4,9 mil milhões e depois mais dois mil. Este processo arrastou-se ao longo do tempo com riscos demasiado grandes. Portanto, uma estrutura de resolução eficaz parece-me indispensável. Não estou certo, porque depende da forma como for concretizado o projeto, que a estrutura que está pensada seja adequada face aos riscos potenciais que o sistema gera em permanência.

O que está previsto é a criação de um organismo de resolução ao lado de um conselho transversal.

Isso parece-me corretíssimo. Mas é muito diferente se for um organismo de quatro ou cinco pessoas, que acompanham a informação e que se reforçam com especialistas na altura em que é preciso atuar. Ou se é um corpo que cria competências profissionais que são altamente sofisticadas e que exige uma grande preparação, muito para além da experiência que um gestor bancário adquire ao longo da sua carreira profissional.

E é isso que defende, uma estrutura permanente?

Penso que deve ser uma estrutura com corpo suficiente para poder não ter nenhuma hesitação quando é preciso intervir. Tem que acompanhar em permanência os testamentos vitais dos bancos, quando eles existirem, porque deveriam existir. E muitas outras formas de simulação da solução de problemas.

Não é um custo elevado para o que se espera que sejam eventos ocasionais?

Bem, os eventos ocasionais até agora foram em todos os bancos portugueses. A começar pela CGD e a acabar em todos os bancos privados, sem exceção.

Mas não foram objeto de resolução. Na sua opinião esses casos seriam tratados também por essa estrutura?

A unidade de resolução é de resolução. Estou-lhe a dizer é que o risco sistémico foi sistemático, e não foi ocasional. Não foram episódios. A atividade bancária e a sua desregulação a partir dos anos 80 gerou um sistema sistemicamente perigoso. Por isso, eu creio que a unidade de resolução devia ser preparada. Até porque, na sua atividade normal de informação, tem um efeito preventivo fortíssimo, que se conjuga com a atividade de supervisão.

Gostava que tivesse mais massa crítica?

Não sei, porque ainda não está definido qual é o contorno exato dessa estrutura. Espero que tenha massa crítica. Desejo que assim aconteça. Já tenho muitas reservas em relação à proposta de o Presidente da República nomear o Governador do Banco de Portugal.

Porquê?

Porque a ideia de alterar o equilíbrio das funções constitucionais, entre o Presidente e os outros órgãos de soberania, é tentadora do ponto de vista da estabilidade, mas ligeira do ponto de vista da lei constitucional portuguesa. As funções do Presidente da República estão muito bem definidas, são muito fortes do ponto de vista da intervenção pública e da intervenção institucional. Não vejo nenhuma razão para que deixe de ser o Governo a nomear. Até porque, no desenvolvimento do mandato, em caso de problemas no sistema financeiro português, no sistema bancário, é o Governo o parceiro do Banco de Portugal em todas as decisões e não é o Presidente.

Precisamos é de competência. Independência temos tido muita e competência relativamente pouca. A minha preocupação não é a independência.

Francisco Louçã

Mas o Presidente não dava mais garantias de independência do Banco de Portugal?

Precisamos é de competência. Independência temos tido muita e competência relativamente pouca. A minha preocupação não é independência. A doutrina da independência é tão forte que as pessoas se esquecem que foi Milton Friedman, um dos economistas mais destacados do século XX, dos mais reacionários e dos mais promotores da ordem liberal, que dizia a seguinte frase: “no dia em que os bancos centrais forem independentes passam a ser reféns dos interesses dos grandes bancos comerciais”. Isso cumpriu-se por inteiro. A forma de atuação dos bancos centrais desde a crise do subprime, do verão de 2007 e na crise de 2008/2009, foi lamentável do ponto de vista da falta de rigor, da falta de preocupação com consequências, e dos efeitos sociais que foram provocados.

Mas não é sempre assim: os supervisores não andam sempre um passo atrás?

Arriscam-se a andar. No caso do crime organizado, sim, porque o crime oculta-se. No caso da atividade bancária não tanto. Quando se criam produtos que são necessariamente de risco, mas são vendidos aos balcões dos bancos, o supervisor tem responsabilidade direta. Porque o permitiu. E porque permitiu vendas a descoberto, permitiu swaps sobre futuros. Permitiu as maiores aventuras financeiras que, evidentemente, só podem dar o resultado que sempre deram ao longo da história e sempre darão: perdas importantes do ponto de vista dos depositantes e da credibilidade do sistema bancário, que é a perda social mais importante de todas.

Estávamos a falar da independência, que não o preocupa…

…O que me preocupa é que haja competência e um sistema de responsabilidade.

O modelo de gestão dos bancos centrais (…) destinou-se simplesmente a proteger uma ordem liberal que desenvolveu o sistema financeiro como um agente sem qualquer controlo democrático. Eu prefiro sempre a democracia.

Francisco Louçã

Mas este modelo de reforma da supervisão não reduz o grau de independência que hoje tem o Banco de Portugal?

Não vejo nenhuma razão para isso.

Mete o Governo na supervisão, que tem sido uma das principais críticas?

Mas o Governo é quem paga. Quando o supervisor não supervisiona, o Governo vai buscar dinheiro à massa orçamental para pagar o que pagou em todos estes bancos. Do Banif, ao BES, aos Cocos no BCP e no BPI.

Mas o Governo pode também usar os supervisores para atingir objetivos eleitorais e essa foi a lógica de dar independência aos bancos centrais assim como a outras autoridades…

O modelo de gestão dos bancos centrais, que foi afirmado desde os anos 80 e é uma raridade do ponto de vista histórico, destinou-se simplesmente a proteger uma ordem liberal que desenvolveu o sistema financeiro como um agente sem qualquer controlo democrático. Eu prefiro sempre a democracia.

Mas sabe que há teorias que não dizem isso….

Que dizem o contrário.

… Que dizem que é fundamental tirar das mãos dos governos um instrumento que fazia ganhar eleições que era a manipulação das taxas de juro.

Sei disso, por isso é que lhe cito o Friedman. Porque a contradição está no campo dos liberais. Esta preocupação que o Milton Friedman tinha é pelo menos um alerta, porque confirmou-se inteiramente. O Alan Greenspan vem das agências financeiras para dirigir o banco central mais poderoso do mundo para voltar às agências financeiras. O Bernanke é a mesma história. Não me venham falar de independência do Greenspan e Bernanke.

E Draghi [presidente do BCE], também pensa que não é independente?

Independente do setor financeiro, não é. O Draghi fez toda a sua carreira no Goldman Sachs, no departamento europeu, com responsabilidades pesadas na crise da Grécia e que são responsabilidades pessoais de Mário Draghi, da gestão e ocultação das contas públicas na Grécia. No BCE assumiu um papel que tem sido destacado. O Draghi salvou o euro da sua crise recente. E resistiu com determinação às pressões alemãs, que eram muito mais punitivas sobre as periferias europeias. Mas não se pode dizer que ele é independente do setor financeiro. Salvou o euro com um preço muito grande e criou um efeito riqueza na valorização artificial dos ativos patrimoniais financeiros, porque não pôs como condição a contrapartida do investimento, que era o que a Europa precisava. A recuperação da Europa é medíocre, longuíssima, porque apesar de salva da sua crise mais preocupante, adiou a recuperação económica, com um preço enorme, do ponto de vista social e do ponto de vista do seu desenvolvimento tecnológico e do potencial produtivo.

"Eu também sou pessimista [em relação ao novo modelo de supervisão]. Quero ver para crer. Acho que o risco é tão grande agora como no passado. Mas passamos a ter uma configuração institucional que acentua muito mais a responsabilidade de todos os intervenientes. (…) Porque nenhum vai poder alegar que desconhecia determinados produtos financeiros ou práticas financeiras.”

Francisco Louçã

Voltando ao modelo de proposta de reforma da supervisão. Na sua perspetiva não reduz o poder do Banco de Portugal e não põe em causa as regras europeias? O Governo entra e o Ministro das Finanças e tem poder de veto em algumas matérias…

Sim, mas o Governo não passa a ter um poder que altere os poderes próprios do Banco de Portugal na sua esfera de supervisão. O que haverá é um conselho que junta os vários supervisores e os vários decisores institucionais no campo da finança, para que haja uma coordenação superior. E isso é absolutamente útil. Veja a história da dramática separação da CMVM e do Banco de Portugal que, a ter sido corrigida a tempo, teria permitido evitar grandes erros no processo do BES, por exemplo.

Que garantias é que temos que este novo modelo vai evitar isso? Quando se olha para trás e vemos que no caso do BES os supervisores cometeram os mesmos erros que no caso BPN?

Eu também sou pessimista. Quero ver para crer. Acho que o risco é tão grande agora como no passado. Mas passamos a ter uma configuração institucional que acentua muito mais a responsabilidade de todos os intervenientes. Na verdade, ao estar mais coordenado com outras instituições, o Banco de Portugal passa a ter muito mais responsabilidade. E o Governo também. E a CMVM [Comissão de Mercados de Valores Mobiliários] também. Porque nenhum vai poder alegar que desconhecia determinados produtos financeiros ou práticas financeiras. Se desconhecia é por sua pura responsabilidade. A informação e a cooperação institucional nas várias esferas de intervenção na regulação do sistema passam a ficar claras. É um passo importante que faltava dar e ainda bem que vai ser dado.

  • Helena Garrido
  • Paula Nunes
  • Fotojornalista

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