• Entrevista por:
  • Helena Garrido e Paula Nunes

António Barreto: “Os políticos têm medo da magistratura e dos procuradores”

Está convencido que ninguém irá preso nos processos mediáticos que estão a decorrer. Como convencido está que houve, desde os anos 70, infiltração de grupos políticos e de interesses na Justiça.

Nem José Sócrates nem Ricardo Salgado, ninguém será preso nos grandes processos mediáticos a que temos assistido. “Talvez um pobre diabo” sem proteção de nenhum grupo. António Barreto confessa-se depois arrependido de o dizer assim em jeito de “desabafo popular”, mas essa é a sua convicção. Estamos nesta parte da entrevista ao ECO a falar basicamente do estado da Justiça, uma das preocupações que sempre teve.

Manifesta-se convencido que “houve uma grande infiltração” de grupos políticos e de interesses nos corpos da Justiça, uma das explicações para o que identifica com um dos males maiores, a guerra entre os seus protagonistas. Deixa propostas para se mudar o estado das coisas. Uma é dirigida ao Presidente, outra aos deputados. E um desafio aos jornalistas: fazer o levantamento dos processos mediáticos desde há duas a três décadas e ver em que situação hoje estão.

Estamos na terceira parte da nossa conversa onde ainda falamos do que era Portugal, do desenvolvimento que teve com especial relevo para o estatuto das mulheres. Mas vivemos ainda num país muito atrasado.

Uma vez disse que estava triste com Portugal. Que, se pudesse, se ia embora. Ainda está?

Isso foi há alguns anos. E acrescentei “se fosse mais novo”. Ainda estou [triste].

O que o entristece mais em Portugal?

À cabeça de tudo o atraso. É o pior que há em Portugal.

Que tipo de atraso?

Atraso económico, tecnológico, da democracia, cultural, educativo. Em todos os domínios.

O Portugal de hoje não é comparável com o Portugal há 60 anos, que conheci muito bem. Era um Portugal muito grande. Ir de Vila Real ao Porto demorava um dia. Hoje vou à Régua de manhã e venho jantar a Lisboa. O Portugal das mulheres de hoje não é o Portugal de há 40 anos ou 70 anos. Se tivesse que fazer uma lista do que mudou mais em Portugal, a situação das mulheres vem certamente à cabeça.

Quando dava aulas e dizia coisas tão banais como que a mulher não podia ter conta bancária, não podia alugar um quarto ou um apartamento, não podia ter passaporte e, se tivesse, não podia ir ao estrangeiro sem autorização do marido… Olhavam para mim como se fosse de outro planeta.

Era preciso uma licença para usar isqueiro, custava 100 escudos por ano [cerca de 50 cêntimos sem atualização monetária]. Era uma fortuna na altura. E era preciso carta de condução de bicicleta. Com 10 anos tive que fazer um exame, fazer um oito, pôr o pé, tirar o pé…

A mudança foi muito grande, o desenvolvimento enorme. Mas os outros também se desenvolveram e nós estávamos muito atrasados em relação à Europa e continuamos. Por exemplo, a situação do funcionamento da Justiça em Portugal é absolutamente incompreensível

O estado da Justiça é a sua grande crítica? Lembro-me de o ouvir dizer que é a maior falha da liberdade em Portugal. Está ainda mais grave do que quando disse isso há uns anos?

Não houve grande mudança nestes anos todos, não houve melhoria.

Estou convencido que houve uma grande infiltração política em todos estes corpos da Justiça desde os anos 70. Que houve grupos partidários, grupos de interesses, que se infiltraram dentro do Ministério Público, nas diferentes escalas das magistraturas.

António Barreto

Os casos recentes a que temos assistido, desde o caso Sócrates ao do arquivamento do processo de Dias Loureiro. Expôs aquilo que foi a sua preocupação de sempre ou é mais grave?

O que está a acontecer com o engenheiro Sócrates é inadmissível. Ainda hoje não está acusado e já esteve na cadeia. Ainda não exprimi sobre esse caso, estou à espera de ponto final… Com Sócrates nunca haverá ponto final… Mas quando houver um ponto parágrafo, quando for acusado, aí já podemos ter matéria. Porque até agora é tudo “diz-se que”.

As fugas de informação processuais e a violação do segredo da justiça é a situação mais intolerável do mundo. Não conheço nenhum sítio onde isto aconteça desta maneira. Ouvem-se gravações áudio, vídeo, as pessoas a falarem em quartos fechados, sem testemunhas, e mesmo assim as coisas chegam cá fora. Há um tal envolvimento de interesses políticos, pessoais, financeiros e profissionais que não se consegue ter uma justiça decente.

Tenho de acrescentar rapidamente uma coisa, porque um dia me foram às mãos e com razão: pelo país há uma grande parte da Justiça que funciona. Os tribunais não estão atolados. Os advogados não são abutres. Os juízes são profissionais discretos.

E qual é a justiça que não funciona?

É das grandes metrópoles. A Justiça em Lisboa e no Porto não funciona, toda ela não funciona.

Independentemente de serem ricos ou pobres.

Sim. Depois é justiça com nomes sonantes, com corrupção, com necessidade de investigar seriamente as coisas antes de elas virem cá para fora. Esta parte não funciona.

As polícias, os investigadores, os acusadores e os magistrados têm lutas seríssimas entre eles. Se puderem prejudicar-se uns aos outros, prejudicam-se. E ao fazê-lo estão a prejudicar o cidadão.

Estou à espera que um jornalista, um dia destes, faça um quadro com todos os processos dos últimos 15/20 anos para ver quando começaram e onde estão hoje.

Mas que processos?

Tudo o que envolve políticos, corrupção, banqueiros, empresários, grande fiscalidade. Peguem e vão ver o resultado que é impressionante de coisas que ainda estão a arrastar-se, a arrastar-se, a arrastar-se…

Consegue perceber porque é que isso é assim? É pela guerra entre protagonistas ou conluio das elites?

Se fosse conluio era preciso que todos estivessem de acordo. Não estão. Estão em luta entre eles, entre magistrados, sindicatos da Justiça — dois, pelo menos –, outros interessados como por exemplo os advogados, as polícias — PSP, GNR, Polícia Judiciária… Todos estes corpos não estão a colaborar e a cooperar como deveriam estar. Não há, sobre eles, política, de serviço público, que os mantenha claramente em colaboração.

Estou convencido que houve uma grande infiltração política em todos estes corpos da Justiça desde os anos 70. Que houve grupos partidários, grupos de interesses, que se infiltraram dentro do Ministério Público, nas diferentes escalas das magistraturas.

A minha convicção é que não vai haver ninguém preso, a não ser um pobre diabo qualquer que não tem pretensões. Ou não é protegido pela Maçonaria, ou pela Opus Dei, ou pelo PS, PSD ou PCP. Não é protegido por ninguém.

António Barreto

Do PCP por exemplo?

Sim, mas do PS de certeza. Do PSD. De todos os partidos. Que se prejudicam uns aos outros o que significa, sempre, prejudicar o cidadão.

Esta teia enorme tem sido responsável pelo atraso da justiça em Portugal. Que é mau, mau, mau… É o pior que há para a democracia, para a liberdade.

Há aqui uma ameaça ao regime? Neste momento temos muitos casos e é frequente ouvir, as pessoas em geral dizerem que não há ninguém preso em Portugal por causa da crise financeira.

Eu estou convencido que não vai ninguém preso.

Nem Ricardo Salgado?

Não. Os políticos, os banqueiros…

Sócrates também não?

Penso que não. Julgado, o caso terminado, recursos feitos e corridos, confirmados, penso que não.

A minha convicção é que não vai haver ninguém preso, a não ser um pobre diabo qualquer que não tem pretensões. Ou não é protegido pela Maçonaria, ou pela Opus Dei, ou pelo PS, PSD ou PCP. Não é protegido por ninguém. Pode acontecer, a um pobre diabo ir preso.

É a minha convicção. Há uma encenação permanente em todos os casos. Podemos estar a ser injustos, já falamos aqui de 10 ou 15 nomes…

E as pessoas são inocentes até prova em contrário.

Eu não sei quem vai ser culpado. Em princípio todos eles dizem que são inocentes. Vamos esperar pelas culpas. Alguns estão condenados. Houve gente aqui condenada, mas que tem recurso e recurso e recurso.

Já estou arrependido de ter dito que estou convencido que não vai ninguém para a cadeia. Parece uma espécie de desabafo popular.

Seja como for, começa a ser a convicção generalizada, não é?

Quando vejo relatos completos de audiências com polícias e inspetores e não acontece nada. Não há ninguém preso, não há ninguém julgado. Então acabe-se com a legislação sobre o segredo de justiça. Eu já fui favorável a isso.

E agora não é?

Continuo. Fui mais longe do que isso. Cheguei a fazer uma proposta de lei para acabar com a escuta telefónica e o segredo de justiça, pura e simplesmente. Acharam que eu estava maluco e ninguém aceitou isso. Mas alguma coisa mudou. O segredo de justiça era o regime geral e agora é só excecional, quando é declarado por um magistrado. Mesmo assim, quando ele o declara, no dia seguinte está tudo cá fora.

O Presidente podia, por exemplo, mandar fazer um livro branco totalmente independente sobre a justiça em Portugal, uma coisa séria.

António Barreto

Acha que a classe política devia atuar nesta área da Justiça?

Acho e há muitos anos. Tudo poderia começar pelo Presidente da República. E este Presidente, com a formação que tem, está muito talhado para isso. Mas até hoje ainda não o quis fazer.

O Presidente podia, por exemplo, mandar fazer um livro branco totalmente independente sobre a justiça em Portugal, uma coisa séria. Há hoje material suficiente, nos observatórios, nas universidades, em Lisboa, no Porto e em Coimbra, para tratar destas coisas.

Depois há o Parlamento. Não tem de pôr os juízes em ordem. Em 1976, na Constituição, criou-se um grande equívoco. Consagrou-se, e bem, a independência da magistratura. Simplesmente, a independência da magistratura transformou-se em total autonomia da magistratura em relação à população e ao povo. Isto é, a magistratura ficou em autogestão. Autogestão não quer dizer independência. Independência dos juízes é o magistrado poder decidir o que deve ser feito numa investigação e como deve ser julgado. Isso é que é a verdadeira independência do juiz. A independência do juiz não é demorar dez anos a fazer uma coisa que devia ser feita em seis meses.

A argumentação dos protagonistas da justiça é de que são as leis que os políticos fazem que estão a inviabilizar e a criar as condições para essa incerteza e excesso de tempo na justiça.

Grande parte das leis que os políticos fazem é o que eles querem. Os políticos têm medo da magistratura e dos procuradores. Até porque muitos vêm de lá.

O Parlamento terá de fazer um dia um debate parlamentar longo, que pode demorar meses ou anos, com sessões repetidas em plenário, em comissão especial, um certo tipo de trabalho que nunca fez. Que é estar trabalhar um ano inteiro no mesmo assunto, a encontrar soluções, novas leis e novos sistemas.

Mas se tiver medo dos juízes nunca o fará.

Promovendo deputados que não têm medo dos juízes nem dos procuradores.

Porque é que o Presidente não está a intervir nessa área?

Acho que o Presidente tem uma conceção excessivamente absentista do que é a separação de poderes. Que, como Chefe de Estado, não tem de interferir no universo da justiça, no universo executivo. Acho que é uma conceção excessiva de separação de poderes. Neste caso pode não intervir diretamente, mas intervir por inspiração. E se tivesse em seu poder um grande livro branco de reflexão sobre a justiça, feito durante um ano ou dois, que lhe desse autoridade técnica, científica, cultural e factual para o inspirar, acho que tinha um resultadão. Sem nunca interferir.

  • Helena Garrido
  • Paula Nunes
  • Fotojornalista

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