Ana Lehmann, secretária de Estado da Indústria: “Há empresas a recusar encomendas porque não têm trabalhadores”

Para Ana Lehmann, trabalhar na indústria é prestigiante, por isso, quer aproximar os jovens do setor. Até porque há empresas a recusar encomendas por não terem mão-de-obra.

Ana Teresa Lehmann é economista e professora associada da Faculdade de Economia do Porto. Assumiu a pasta da Indústria há dois meses. Depois da InvestPorto, Ana Lehmann foi escolhida para suceder a João Vasconcelos na pasta da Indústria, que pertence ao Ministério da Economia de Caldeira Cabral. Numa entrevista ao ECO, por email, a nova secretária de Estado da Indústria faz um retrato da economia atual, dos desafios do setor e das expectativas para os próximos tempos.

Dois meses depois de substituir João Vasconcelos, que balanço faz e quais têm sido os maiores desafios?

Faço um balanço extremamente positivo. Portugal está a atravessar um bom momento e estão criadas as condições para o crescimento da economia nacional, com a indústria a ter um papel essencial nesta criação de valor. Para reforçar este impulso vamos dar continuidade e executar as medidas para a indústria 4.0 e prosseguir com a estratégia para o empreendedorismo, aprofundando e escalando estas dinâmicas e introduzindo algumas abordagens complementares, como o fomento das ligações entre grandes empresas (nacionais e internacionais) e empresas de menor dimensão (startups ou PME já existentes).

"O que os muitos empresários, associações e clusters com quem tenho dialogado mais referem é a falta de recursos humanos qualificados para trabalhar na indústria.”

Ana Lehmann

Secretária de Estado da Indústria

Claro que ainda existem desafios e o que os muitos empresários, associações e clusters com quem tenho dialogado mais referem é a falta de recursos humanos qualificados para trabalhar na indústria. Neste momento de expansão económica, as empresas estão com níveis de encomendas elevados e, por vezes, têm de recusar pedidos porque não possuem trabalhadores para fazer face ao aumento de atividade.

Urge apostar em iniciativas de formação virada para a indústria e para as necessidades concretas das empresas. Por outro lado, por mais que a oferta de cursos especializados direcionados à indústria aumente, há que ter procura por parte do mercado de trabalho. É necessário aproximar os jovens da indústria, fazê-los sentir que trabalhar numa fábrica é prestigiante e oferecer carreiras sólidas e especializadas, daí que estamos a gizar uma campanha a este nível, que tem de ser algo fora da caixa, utilizando os instrumentos e as plataformas que os jovens mais utilizam. Em paralelo, estamos a trabalhar noutras vertentes, como o financiamento e a modernização e digitalização da indústria, bem como no âmbito regulatório e de enquadramento para atividades mais emergentes e disruptivas. Mas sobretudo a combater o mito da separação entre empresas estabelecidas e startups, e a fomentar as transações de bens e serviços entre elas, e a co-criação de tecnologias e inovação a diversos níveis.

Disse, em entrevista ao Expresso, que “é sexy trabalhar na indústria”. O setor tem tanto de atrativo como de tradicional. Como convencer os industriais empresários de que a tecnologia pode ser uma mais-valia, mesmo que eles queiram fazer tudo ‘com as próprias mãos’?

Há uma visão passadista sobre o nosso tecido empresarial que, mais do que se imagina, tem sabido modernizar as suas empresas, investir em tecnologia e inovar tanto em produtos, como em processos. Naturalmente ainda existem casos de produção utilizando métodos menos modernos, mas o que vemos é uma adoção cada vez maior de técnicas produtivas sofisticadas e de uma visão muito aberta para a tecnologia. Os empresários estão muito empenhados na aplicação das medidas do programa da Indústria 4.0. Tecnologias como a impressão 3D, já usada por várias empresas do setor, a Inteligência Artificial, Big Data, Internet of Things ou aposta em sistemas de software para maior eficiência produtiva são ferramentas à disposição de todas as empresas, mesmo as que já apostam em inovação, I&D e na digitalização.

Este é um tema crucial para o Governo. Esta semana reunimos pela primeira vez o Comité Estratégico da Plataforma Portugal i4.0, num encontro que contou com 18 entidades privadas e nove organismos públicos e onde lançámos as bases para o acompanhamento e monitorização da execução das atividades da plataforma. Esta plataforma foi criada para a implementação das medidas da estratégia para a Indústria 4.0 e vai levar a cabo um conjunto de atividades para acelerar a implementação das medidas definidas. Gostamos por um lado do contributo de quem sabe, e também do escrutínio e da prestação de contas pelos resultados atingidos.

De que maneira pretende estreitar as relações entre startups e grandes empresas? É possível tornar o fosso entre as duas dimensões mais pequeno e, sobretudo, mais eficaz ao nível de resultados?

Como referi acima, esta relação pode ser estreitada aumentando as oportunidades para transações de bens e serviços e também de transferência e co-criação de conhecimento entre grandes empresas (nacionais e internacionais), startups e PME com alguma maturidade. As grandes empresas ou grandes investidores podem utilizar tecnologias desenvolvidas pelas startups/PME e também bens e serviços, nomeadamente B2B [business to business]. De referir que algumas das empresas emergentes mais vibrantes e bem-sucedidas do ecossistema são B2B e abertas a iniciativas que permitam reduzir o risco das empresas mais jovens. Esta diminuição do risco permitirá que as empresas se posicionem na fronteira tecnológica e desenvolvam inovações mais disruptivas.

O Estado também pode ser potenciador destas ligações, impulsionar a criação de alianças estratégicas entre grandes empresas, PME e startups. É preciso lembrar que todas as empresas já foram startups – não falamos apenas de tecnológicas ou empresas de software, há startups em todos os setores, do têxtil ao agroindustrial, passando pela metalomecânica e pelo calçado. Alianças estratégicas que façam sentido entre empresas de distintas dimensões permitirá crescer as vendas e consolidar o volume de negócios. Há que ter uma visão holística e mais abrangente do que é o “ecossistema”, e incluir grandes empresas, investidores internacionais, etc..

Como vê a indústria das startups no contexto atual da economia portuguesa? Quanto falta para termos um unicórnio 100% português nascido nesta nova vaga de empresas criadas há menos de cinco anos?

Em Portugal, o ecossistema empreendedor é vibrante e é de registar o surgimento de um elevado número de novas empresas no último ano. Temos dados que indicam que 46% do emprego gerado em 2016 foi através de novas empresas. Existem inúmeros casos que documentam de forma clara o dinamismo deste ecossistema. A nível de condições de localização e acompanhamento destaco a Rede Nacional de Incubadoras, que conta já com 135 entidades. Existe também um conjunto de startups que se desenvolveram de forma sustentável, já correspondendo mais ao contexto de scale ups – e tal tem acontecido em várias indústrias, incluindo empresas que têm sido bem-sucedidas no levantamento de capital. Temos implementado um vasto conjunto de medidas de financiamento, networking e promoção internacional das nossas startups.

Por outro lado, numa economia global, a última coisa em que poderíamos pensar é num conceito de startup local – ou de um unicórnio doméstico. Acreditamos que as startups que estão a nascer em Portugal nos últimos anos têm um considerável potencial de crescimento e que os processos de internacionalização das empresas com elevado valor acrescentado vão capturar talento e oportunidades noutros mercados. Essa captura de valor e orientação “born global” faz parte do ADN que qualquer startup de sucesso e, por maioria de razão, que qualquer unicórnio tem de ter. Na atualidade e para este tipo de empresas, o conceito de fronteira territorial perdeu pertinência, e o que interessa não é ser doméstico ou nacional, o que releva é manter cá atividades que permitam o crescimento do negócio, a criação de emprego qualificado, o fomento das exportações e a inovação, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento do país.

Que impacto prevê para o programa da Startup Portugal, criado há um ano, dentro de cinco ou dez anos?

A Startup Portugal é uma entidade de direito privado que tem merecido um grande apoio da nossa parte e que está a acompanhar a estratégia para o empreendedorismo definida pelo Governo, que consiste numa realidade mais abrangente e que opera a múltiplos níveis, através de um conjunto de políticas e de entidades que corporizam uma parte relevante do ecossistema. Esta é uma estratégia para já definida a quatro anos mas cujos resultados só poderão ser cabalmente medidos a médio e longo prazo. A estratégia para o empreendedorismo é um dos pilares do programa governamental em vigor, que materializou uma abordagem consistente de apoio ao empreendedorismo num conjunto de políticas públicas, com a mobilização da sociedade civil e impacto na iniciativa privada. Esta estratégia tem dado origem a um vasto conjunto de startups em múltiplos setores e criado condições para apoiar o crescimento destas empresas emergentes. Noto, ainda, que a estratégia para o empreendedorismo tem como eixo fundamental a densificação das redes a nível nacional mas sobretudo internacional e também a captação de investimento para estas novas fases de crescimento. Destaco o Fundo 200M, que será operacionalizado em breve, prevendo coinvestimento público e privado nacional e internacional, numa lógica de atração de venture capital internacionais e injeção de smart money na economia.

Estamos a menos de dois meses do Web Summit. O que aprendemos até agora e o que vamos melhorar este ano? Haverá medidas suplementares de segurança para o período em que decorre o evento?

O Web Summit é um grande evento tecnológico de relevância mundial, que projeta a imagem de um país moderno e uma visão contemporânea de Portugal, das suas empresas e do seu talento. Com a experiência adquirida na primeira edição, concluímos que traz bons resultados promover a imagem de Portugal desta forma. O Web Summit revelou-se um poderoso fórum de networking e captação de financiamento para as startups, bem como de atração de investimento direto estrangeiro. É um ponto de encontro privilegiado entre empreendedores, investidores e outros atores que gravitam no ecossistema internacional.

Assim, registaria como resultados importantes, entre outros, o impacto na imagem de Portugal junto dos investidores internacionais e das empresas com quem as startups transacionam bens e serviços, além dos efeitos imediatos sobre a economia nacional.

Nesta edição esperam-se pelo menos 60 mil participantes e teremos um programa ainda mais ambicioso, com a presença de vários líderes mundiais, de empresas e outras organizações. Estamos a trabalhar com uma taskforce que trata de todos os temas organizativos que garantam uma segunda edição ainda mais bem-sucedida que a primeira.

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