Quando a esmola é muita, o santo desconfia

Na minha opinião, a desintermediação bancária, bem como o surgimento das criptomoedas, é, em parte, a manifestação do populismo na vertente financeira.

O episódio desta semana do Contas Poupança explicou como podem os portugueses transformar-se em banqueiros (bom, em rigor, já o somos, que a Caixa Geral de Depósitos é pública, mas para além disso, entenda-se). Usando o exemplo da portuguesa Raize, o programa explicou que existem plataformas online que permitem que as pessoas emprestem directamente às empresas. As taxas de juro andam em torno dos 7%, bastante acima do que oferecem os bancos por um depósito a prazo.

Quando a esmola é muita, o santo desconfia. Uma economista neoclássica também fica com algumas dúvidas. Não obstante os recentes problemas do sector bancário, um depósito continua a ser uma opção mais segura que emprestar dinheiro a um pasteleiro para comprar uma carrinha que lhe permita ir distribuir os seus bolos decorados a pasta de açúcar. E, por isso, não me causa qualquer surpresa a remuneração muito acima das que os bancos oferecem: é que aqui somos nós quem está a correr o risco e, por isso, a taxa de juro tem de o reflectir, tem de incluir um prémio.

Mas como consegue essa taxa de juro competir com a cobrada nos empréstimos bancários? Não creio que o cidadão comum seja menos avesso ao risco que a banca. Uma vantagem frequentemente referida é a rapidez do processo. Mas, então, porque não são os bancos mais ágeis na avaliação dos pedidos de crédito? Terá que ver com as exigências regulatórias, que não se aplicam às FinTech (a Comissão Europeia está a preparar um Plano de Acção neste domínio)? Não existirá uma errada avaliação de risco por parte de quem coloca aqui o seu dinheiro?

Há, neste momento, no meu ombro, um economista comportamental em miniatura a segredar-me ao ouvido “desiste de assumires racionalidade e vais ver que as perguntas se respondem”. Mas eu não abdico de considerar racionais os agentes económicos, sendo que não confundo racionalidade com materialismo. O pagamento de juros não é tudo e alguns estudos demonstram que os financiamentos concedidos a partir destas plataformas se assemelham a donativos: as pessoas investem em projectos com que se identificam, isso dá-lhes um sentimento de pertença, o que é uma forma (não monetária) de serem recompensadas.

Na minha opinião, a desintermediação bancária, bem como o surgimento das criptomoedas, é, em parte, a manifestação do populismo na vertente financeira. Não são apenas os partidos políticos a estar desacreditados. A mais recente crise económica mundial veio expor uma série de comportamentos pouco éticos (para ser muito eufemista), falhas por parte das entidades reguladoras e de supervisão e conluios de interesses privados que sacrificaram o interesse público. E isso conduziu a uma natural quebra de confiança no bom funcionamento das instituições. Desempenhando quase o papel que outrora tiveram as armas, a internet veio conferir ao cidadão comum, não o poder de vencê-las, mas antes o de viver sem elas. Não se adivinha sangrenta, mas é uma revolução.

Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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