Um dia na vida do presidente Trump, segundo “Fire and Fury”

  • Juliana Nogueira Santos
  • 14 Janeiro 2018

Noites passadas ao telefone, reuniões sem papéis e sem atenção e hábitos incomuns. O ECO reconstruiu a rotina de Donald Trump na Casa Branca a partir do novo livro de Michael Wolff.

“É melhor não fazer mais ameaças aos Estados Unidos ou terão como resposta fogo e fúria como o mundo nunca viu.” Com esta ameaça a Pyongyang, Trump cravou na pedra aquela que seria a expressão que caracteriza o seu primeiro ano como inquilino da Casa Branca. Michael Wolff, jornalista do The Hollywood Reporter, pegou na expressão e transformou-a num livro que voou das prateleiras e se estreou em primeiro nos tops de vendas.

“Fire and Fury: Inside the Trump White House” — em português Fogo e Fúria: Dentro da Casa Branca de Trump — retrata os primeiros meses da presidência de Donald Trump e mostra um cenário ainda mais caótico do que aquele que passava cá para fora. A desorganização interna, a teimosia e imprudência do presidente e as incoerências eram já conhecidas. Mas este livro, construído através de mais de 200 entrevistas a membros da administração e até ao próprio presidente, mostra uma Casa Branca que praticamente vive para o presidente.

A capa do livro de Michael Wolff.Grupo Almedina

Não demorou até que os meios de comunicação social pegassem em muitos dos episódios que eram retratados, começando no facto de nenhum dos membros da campanha de Trump — nem sequer o próprio candidato e a sua família — acreditarem que havia alguma hipótese deste se tornar presidente. O empresário queria apenas utilizar esta exposição como publicidade grátis para engrandecer a sua marca.

As ligações com a Rússia, a vida de casado e a relação com o poder são também os tópicos que mais manchetes têm feito nos últimos dias. Mas acompanhar estes primeiros meses de presidência através desta vista privilegiada permite também reconstruir uma imagem daquele que é o seu dia-a-dia, de como é a vida na Casa Branca e na Sala Oval. O ECO leu as mais de 300 páginas que compõem o livro que vendeu 29 mil exemplares no primeiro fim de semana e marcou os hábitos do homem mais poderoso do mundo.

Acordar numa cama que não é sua

Para falar do dia-a-dia do presidente dos Estados Unidos da América é preciso ter em conta a mudança abrupta que aconteceu. Uma vez que Trump nem sequer acreditava que ia ganhar a eleição, quanto mais abandonar a sua vida, as suas rotinas e, especialmente, a Trump Tower. Aliás, a mudança para a Casa Branca é apontada por Wolff como um processo pelo qual Trump nunca tinha passado.

"Nos primeiros dias, encomendou duas televisões para juntar à que já lá estava e uma fechadura para a porta, causando um impasse com os Serviços Secretos que insistiram que tinham de ter acesso livre ao quarto.”

Michael Wolff

“O septuagenário Trump era uma criatura de hábitos a um nível que poucas pessoas sem poder despótico do seu ambiente conseguem alguma vez imaginar”, narra o jornalista. Afirma também que, desde que entrou na Trump Tower, o empresário nunca mais mudou de casa, fez sempre as mesmas deslocações e manteve o seu escritório como se fosse uma “cápsula do tempo”. As mesmas caras, as mesmas vozes, a mesma vida.

Trump no seu escritório na Trump Tower.Washington Post/YouTube

Assim, na primeira vez que ficou por sua conta na Casa Branca, visto que Melania se manteve em Nova Iorque durante muito tempo, Trump sentiu-se “incomodado” e “até assustado”. O espaço, já antigo e raramente renovado, fazia o magnata da hotelaria sentir-se fora do seu ambiente, algo que até foi visto com surpresa pelos seus amigos mais chegados.

Nada como uma boa remodelação no quarto para que Trump se voltasse a sentir em casa. “Nos primeiros dias, encomendou duas televisões para juntar à que já lá estava e uma fechadura para a porta, causando um impasse com os Serviços Secretos que insistiram que tinham de ter acesso livre ao quarto”, escreve Wolff.

Também os hábitos dos funcionários da Casa Branca mudaram para se adaptar às exigências do novo presidente. “Advertiu as empregadas domésticas por terem apanhado uma camisa do chão: ‘Se a minha camisa está no chão é porque eu a quero no chão’. Ninguém tocava em nada, especialmente na sua escova de dentes. Além disto, avisou as empregadas domésticas que quando quisesse a cama feita, ele próprio tirava os lençóis”, conta.

O seu medo de ser envenenado é a justificação para todas estas imposições. Wolff relembra que esta é também a razão pela qual Donald Trump gosta de comer no McDonald’s: “Ninguém sabe que ele está a pedir e a comida foi pré-cozinhada de uma forma segura.” Este tipo de refeições são muitas vezes o almoço e o jantar do presidente norte-americano.

Reuniões sem papel e com ouvidos moucos

Sendo agora o homem mais poderoso do mundo, quem é eleito para presidente do Estados Unidos da América acaba por passar a maior parte do tempo em reuniões, desde briefings diários, a encontros com parceiros e simples cerimónias protocolares. Trump, assim que foi eleito, bateu o pé e afirmou que não precisava de briefings diários pois estes eram repetitivos. “Eu sou uma pessoa inteligente, não preciso de ouvir as mesmas coisas todos os dias durante oito anos”, afirmou numa entrevista.

"Para Steve Mnuchin e Reince Priebus ele era um ‘idiota’. Para Gary Cohn, era ‘burro como a merda’. Para H.R. McMaster ele era ‘imbecil’. E a lista continuava”

Michael Wolff

Ainda que a Casa Branca não tenha cedido em relação a estas reuniões, Trump também não recuou totalmente. “Trump não lê. Nem sequer passa os olhos”, escreve Wolff, em relação aos documentos que lhe são entregues. “Se está impresso, mais vale não existir. Alguns acreditam que, por todas as razões práticas, ele tem um baixo nível de literacia.

As justificações multiplicam-se, nunca abonatórias para Trump. “Outros acham que é disléxico, mas certamente a sua compreensão é limitada. Outros concluem que ele não lê porque não tem de o fazer e isso é um dos seus atributos como populista. Ele está além da literacia — totalmente televisivo.”

E o leitor pode dizer: ‘não é preciso ler os documentos para perceber o que se fala numa reunião’. Wolff continua ainda: “Não só ele não lê como também não ouve. Prefere ser a pessoa a falar. E confia na sua própria sabedoria — não importa o quão insignificante ou irrelevante ela seja — mais do que na de qualquer pessoa. Tem também défice de atenção, mesmo quando pensa que alguém merece a sua atenção.”

O livro dá ainda conta que a própria equipa que está por trás do presidente considera que ele não tem capacidades para o ser. “Toda a gente, à sua maneira, tenta expressar de uma maneira crua o facto óbvio de que o presidente não sabia o suficiente, não se importava particularmente e que estava confiante, se não sereno, das suas certezas inquestionáveis”, aponta o jornalista.

Junta-se ainda uma lista de nomes que os seus braços direitos utilizavam para se referir a ele: “Para Steve Mnuchin e Reince Priebus ele era um ‘idiota’. Para Gary Cohn, era ‘burro como a merda‘. Para H.R. McMaster ele era ‘imbecil’. E a lista continuava”. Era então assumido que eles próprios tinham de, de qualquer forma, “compensar pelas falhas de Trump”.

Um serão de contactos

Após um dia de reuniões e compromissos presidenciais, Trump não para. A última refeição do dia é passada com o seu conselheiro favorito, Steve Bannon. Por volta das 18h30, “Bannon junta-se a Trump em todos os jantares, ou pelo menos disponibiliza-se para tal — um solteirão a apoiar outro”. Este hábito ficou órfão quando o fundador do jornal de extrema-direita Breitbart abandonou a Casa Branca.

Ainda assim, esta não é a forma favorita de Trump passar a sua hora de jantar. Como refere Wolff, se não jantasse com Bannon, e “mais ao seu agrado, estaria na cama a essa hora com um cheeseburguer, a ver televisão nos seus três ecrãs e a fazer chamadas.”

E sendo o presidente um homem que gosta de estar perto daqueles que mais o admiram, quer seja através de rallys — grandes convenções espalhadas pelo país — ou da sua conta oficial do Twitter, as chamadas ao serão não servem só para distração, mas também para este se manter próximo daqueles que acha seus aliados. “O telefone é o seu ponto de contacto real com o mundo — [usa-o] para falar com um grupo pequeno de amigos”, lê-se em Fire and Fury. Este grupo foi ficando maior ao longo do tempo, incluindo não só empresários, como conselheiros externos, republicanos e até fontes secretas.

"Quando o presidente falava ao telefone depois do jantar, tinha habitualmente um discurso incoerente. De uma forma sádica e paranóica, especulava sobre as falhas e fragilidades da sua equipa. Bannon era desleal. Priebus era fraco. Kushner era um ‘lambe-botas’. Spicer era estúpido. Conway era uma choramingas. Jared e Ivanka nunca deviam ter vindo para Washington.”

Michael Wolff

“Quando o presidente falava ao telefone depois do jantar, tinha habitualmente um discurso incoerente. De uma forma sádica e paranóica, especulava sobre as falhas e fragilidades da sua equipa. Bannon era desleal. Priebus era fraco. Kushner era um ‘lambe-botas’. Spicer era estúpido. Conway era uma choramingas. Jared e Ivanka nunca deviam ter vindo para Washington”, enumera ainda, justificando assim muita da informação confidencial que vinha a público.

Trump ligava para discutir pontos de vista, exteriorizar preocupações ou só mesmo falar. Só que “nas suas conversas noite dentro na cama, frequentemente falava com pessoas que não tinham razão para manter as suas confidências”. Terá sido assim que a informação de que Trump andava em roupão às escuras durante a noite porque não sabia mexer nos interruptores foi conhecida. E tantas outras.

O dia termina então, com este a adormecer numa cama que pouco é ocupada por Melania Trump. Adormecia para, muitas vezes, acordar muito cedo e começar as suas discussões no Twitter.

Com este cenário pouco colorido, parece óbvio que Trump não queria que estas páginas vissem a luz do dia. Ainda que a sua equipa de advogados tenha tentado parar a publicação deste cocktail de fogo e fúria, o esforço não teve sucesso e a bomba rebentou com efeitos que se estendem aos antigos aliados. Na Amazon, há utilizadores que afirmam que este foi um dos principais motivos pelos quais compraram o livro.

Em Portugal, o livro será editado pela Actual Editora, do Grupo Almedina, que garante ao ECO a chegada às livrarias já em fevereiro. Entretanto, Trump continua afirmar que ter ganho as eleições à primeira tentativa não mostra que ele é “inteligente”, mas sim “genial”. “E um génio muito estável”, remata.

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