É uma lei, por favor. Mal passada, com molho e sem batatas

A Carris não pode ser concessionada a privados porque é um escândalo. Mas o governo ou o parlamento podem fazer o “outsourcing” da feitura de leis a advogados contratados por privados. É isto?

Segunda-feira

Há poucas ou nenhuma novidade no relatório da OCDE sobre Portugal. Os mesmos apelos a mudanças estruturais, os mesmos elogios dos últimos anos ao aumento do peso das exportações na economia, as mesmas previsões mais prudentes do que as do governo. É um ritual anual, tão pouco surpreendente como o Natal. Não estando no que disse a OCDE, a novidade deste ano esteve na encenação e pompa e circunstância que o governo resolveu fazer à volta do relatório e da sua apresentação.

Vários ministros na cerimónia – o que levou o secretário-geral da organização, Ángel Gurría, a ironizar: “Senhor ministro, senhor ministro, senhor ministro, senhor ministro… Hoje o Governo não trabalha, estão todos aqui” – e a leitura prévia interpretada do documento para tentar conduzir a forma como o documento é percepcionado na opinião pública. Nada de mal daqui vem, obviamente. Apenas torna evidente que o governo tem muito presente o risco económico e financeiro que paira sobre o país e que tenta, desesperadamente, disfarçar. O problema é que isto não se resolve com truques de comunicação demasiado óbvios, mas sim com acção e com medidas de política. Se é que a resolução ainda está do nosso lado.

Quarta-feira

– A comunicação pode ter algum efeito interno, junto dos eleitores e cidadãos. Mas dificilmente terá junto dos mercados, que sabem fazer contas autonomamente sem governos a ditarem os números. O primeiro leilão de dívida do ano confirmou todos os outros indicadores anteriores: os juros estão em alta sustentada e, semana a semana, vão estacionando em novos patamares. Nos empréstimos a cinco e sete anos que fez esta semana, Portugal pagou juros que são cerca do dobro dos registados há oito meses.

Nunca me pareceu acertado reagir de forma esquisofrénica ao andamento diário das décimas do mercado ou das estatísticas, sejam elas de juros, bolsa, desemprego ou crescimento económico. Num dia ou trimestre é a euforia porque a coisa correu melhor, no outro é a tragédia e a depressão porque os dados são piores.

No caso dos juros da dívida já não estamos a lidar com a espuma dos dias. São já demasiados meses de confirmação de uma tendência de subida, que está consolidada. Não perceber que estamos com um problema é altamente perigoso e significa que estamos a entrar em negação. Tentar resolvê-lo com interpretações criativas e “sound bytes” para as televisões é pouco inteligente: não só é contraproducente como revela que não aprendemos nada com os trágicos anos de 2010 e 2011.

– Que a história da contratação de António Domingues para a Caixa Geral de Depósitos estava mal contada já todos tínhamos percebido. Ela começa agora a ser narrada com factos concretos e com documentos. A revelação, pelo ECO, de correspondência trocada entre o Ministério das Finanças, António Domingues e os seus advogados deu início a uma procissão que ainda pode ir no adro.

Há duas questões importantes neste momento à procura de resposta: o nível de garantias que o Governo deu aos gestores da Caixa sobre a desobrigação destes apresentarem as suas declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional; e, mais importante do que isto, se o ministro das Finanças ou outro membro do governo mentiram ao Parlamento quando escreveram que não existia correspondência sobre o assunto trocada com Domingues. Pelos vistos, havia. Mas há outras duas derivações importantes do assunto.

A primeira é o papel do Presidente da República em todo este processo – e começa a não haver dossier governativo com visibilidade onde Marcelo Rebelo de Sousa não esteja também comprometido com posições públicas. Depois de defender a permanência de Mário Centeno no governo por não haver qualquer documento com garantias explícitas do ministro, o que fará o presidente se algum compromisso escrito aparecer? Só pode fazer uma coisa: chamar o primeiro-ministro e pedir-lhe a demissão do titular das Finanças. Ao atravessar-se em cada dossier como se fosse chefe do Governo, Marcelo torna-se protagonista activo em cada um deles e será também avaliado por isso.

A segunda derivação é a quase total indiferença da classe política perante a evidência documentada de que as alterações legais feitas para tentar acomodar o compromisso entre o Governo e António Domingues foram escritas pelos advogados deste. A cumplicidade chegou ao ponto do Ministério das Finanças ter apresentado um verdadeiro menu de alternativas onde os juristas privados podiam escolher a que melhor defendia os interesses do seu cliente. Querem assim, ou preferem assado?

Havia mil e uma maneiras diferentes desta para o Governo cumprir a palavra que – erradamente, mas o ponto agora não é esse – deu ao gestor. Mas nenhuma podia representar esta submissão da actividade mais nobre dos poderes públicos, a produção legislativa, a interesses privados ao ponto de ter estes a pegar na mão de quadros do Estado para que os guiar na escrita do articulado.
O país que discute as parcerias público-privadas, algumas vezes de forma indignada e com tom de escândalo, assiste depois tranquilamente à privatização de um processo legislativo documentalmente comprovado e nada acontece. Nem Bloco, nem PCP, nem PSD ou CDS têm nada a dizer sobre isto?

Deixem-me ver se entendo. A Carris não pode for concessionada a privados porque é um escândalo. Mas o governo ou o parlamento podem fazer o “outsourcing” da feitura de leis a escritórios de advogados contratados por privados que está tudo bem. É isto?

E esta é, afinal, a mais grave corrupção que vai crescendo à nossa frente e à vista desarmada: a degradação dos valores éticos e morais, onde já tudo é visto como sendo normal. Seja o trânsito entre regulados e reguladores na banca, a promiscuidade entre legisladores e legislados ou as verdades ou mentiras ditas em comissões parlamentares de inquérito. E no final, vai um cafezinho?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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