A carta que o Governo devia enviar a si mesmo

Ao prometer mundos e fundos, o PT2020 movimenta entusiasmos, entusiasma as hostes, mas, no final, se não houver concretização nem pagamento, debalde, pode ser tudo em vão.

O Governo, ao que parece, prepara-se para puxar as orelhas aos empresários que teimam em não arrancar com investimentos aprovados no âmbito do Portugal 2020 (PT2020). Segundo foi publicado aqui no ECO há dias, os beneficiários de fundos comunitários que ainda não tenham iniciado a execução dos seus projectos de investimento receberão em breve uma carta de aviso: ou se despacham ou perdem o direito aos fundos! Pimba: serve o aviso para aprenderem que quem se mete com o ministro do Planeamento leva.

Mas, não obstante o simbolismo da correspondência, a carta consubstancia um procedimento deveras peculiar, representando na verdade uma curiosa redundância; afinal, os contratos assinados entre os promotores dos investimentos e o PT2020 já estabelecem prazos de execução. Assim, a que se deve então a condescendência do Estado? Para quê enviar uma carta, um aviso redundante, se os contratos já salvaguardam a exigência de uma execução atempada dos fundos? Deve-se isto à nossa proverbial tendência para a procrastinação? À necessidade de acudir aos lucros, ultimamente em baixa, dos correios? Ou será outra coisa qualquer que move esta aparente complacência transmudada em pulso firme?

A razão da carta tem várias origens. Primeiro, seria extremamente impopular em Portugal, onde estamos habituados a um jeitinho de última hora, e onde infelizmente ainda subsiste a prática de suspender “ad aeternum” os prazos – uma cultura na qual algumas entidades públicas são especialistas –, que o ministro e os gestores do PT2020 deixassem cair os contratos em incumprimento. Até porque, em matéria de impopularidade (política), Pedro Marques já tem com que se preocupar: o investimento público, não obstante a euforia leonina do início deste ano – “este ano é que vai ser!” –, continua sem arrancar (como ainda há dias salientava o Joaquim Sarmento aqui no ECO). Segundo, seria também extraordinariamente impopular que o Estado tirasse o tapete aos empresários incumpridores quando na realidade é o próprio Estado, ele mesmo, que se comporta como um grande incumpridor. Pois é, como já devem ter percebido, este artigo insere-se na minha série habitual de artigos dedicados ao tema do Estado incumpridor. Um Estado para quem as regras, em particular os prazos, são para todos, excepto para si mesmo. E é porventura esta realidade, este pesar de consciência (?!), que apesar de tudo conduz à conveniência de enviar uma simples carta de aviso, em vez de uma mais séria carta de revogação.

Partindo em busca do mau exemplo do Estado, observa-se, no mais recente relatório de monitorização do PT2020 (Junho 2017), que a taxa de admissibilidade das candidaturas apresentadas ao PT2020 é próxima de 100%. No que respeita ao programa Compete, aquele que está mais vocacionado para as empresas, a taxa de admissibilidade é mesmo de 100%. Impecável – diria o Estebes. Os empresários portugueses e os consultores que os auxiliam na submissão das candidaturas são “experts” na matéria, sendo que as próprias regras devem também ser de fácil entendimento, facilitando a submissão das candidaturas e aumentando a admissibilidade das mesmas. Num país ainda à míngua de fundos, a existência de regras simples no acesso a esta “pipa de massa”, conforme lhe chamou o senhor da Goldman, são de saudar. Todavia, aquilo que já não é de saudar é o incumprimento de regras que deveriam ser cumpridas sem grandes desvios. Refiro-me em especial aos prazos de análise das candidaturas que, lamentavelmente, as entidades gestoras do PT2020 teimam em não cumprir. Na verdade, na ausência de penitência dos gestores públicos, ou de repreensão do executivo, resta um grande silêncio sobre o assunto.

A respeito dos prazos de avaliação das candidaturas ao PT2020, dizem as regras que [a] “decisão fundamentada sobre as candidaturas é proferida pela autoridade de gestão, no prazo de 60 dias úteis, a contar da data limite para a respetiva apresentação”, acrescentando de seguida que [o] “prazo referido suspende-se quando sejam solicitados ao candidato quaisquer esclarecimentos, informações ou documentos, o que só pode ocorrer por uma vez, ou quando sejam solicitados pareceres a peritos externos independentes dos órgãos de governação.” Enfim, as regras não podiam ser mais fáceis de entender: o prazo inicial de avaliação é de 60 dias e só pode ser suspenso uma vez, uma única vez, salvo recurso a peritos externos. Isto é o que está escrito no portal oficial do PT2020.

Mas, na realidade do dia-a-dia, a situação não é assim tão linear. Há situações, dossiers normais sem recurso a peritos externos, onde os atrasos são superiores a um ano. Porém, como não há números oficiais sobre esta realidade, convenientemente escamoteada do escrutínio público – ao silêncio não se responde! –, sobra apenas a evidência empírica de cada um. Ou, na expressão anglo-saxónica, a tal “anecdotal evidence” que, por definição, não é generalizável, mas que no caso em apreço, segundo a minha percepção, não será nada anedóctica. Bem pelo contrário.

Há ainda um outro tipo de incumprimento: os atrasos do Estado às empresas, no pagamento das despesas elegíveis em operações aprovadas. Neste ponto em particular, a avaliar pelos dados oficiais, a situação será imaterial. Afinal, segundo o relatório de monitorização do PT2020, o montante de pagamentos aos promotores excede já o montante de fundos executados, depreendendo-se, portanto, que o Estado tem sido proactivo e rápido a adiantar a massa. Porém, tem sido sempre assim? Pode o Estado garantir que não existem quaisquer casos de promotores que, tendo realizado as despesas elegíveis, continuam a aguardar (e eventualmente a desesperar) pelo pagamento das mesmas? Creio bem que não. E não existindo essa garantia, o dinheiro do PT2020, essa pipa de massa, pode muito bem transformar-se em presente envenenado. Ao prometer mundos e fundos, o PT2020 movimenta entusiasmos, entusiasma as hostes, mas, no final, se não houver concretização nem pagamento, debalde, pode ser tudo em vão. Porque sem dinheiro a entrar na tesouraria das empresas, o equilíbrio financeiro das mesmas fica em causa, e ficando isso em causa tudo o resto pode acabar desequilibrado. No limite, tudo pode acabar quebrado. É assim, por estas e por outras, que o Estado, ele mesmo incumpridor, manda uma cartinha aos demais incumpridores. Não tem moral para mais.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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