Barroso e Guterres: os extremos no mundo tocam-se em Portugal

  • Inês David Bastos
  • 11 Outubro 2016

António Guterres e Durão Barroso estão no topo do mundo, na ONU e no Goldman Sachs. Os seus percursos tocaram-se, sucederam um ao outro e hoje um é amado e outro odiado. Estão nos extremos.

Pouco passava das 20h00 quando, naquela noite de 16 de dezembro de 2001, o burburinho começou a circular nos quartéis-generais onde os partidos aguardavam os resultados das eleições autárquicas. Mais de uma hora depois, o rumor transformou-se em facto político e António Guterres surgiu aos portugueses para anunciar a demissão da chefia do Governo perante o desaire eleitoral. Noutra ponta de Lisboa, Durão Barroso, então líder do PSD, festejava a porta que acabara de lhe ser entreaberta para a subida à cadeira do poder. Que alcançou. Foi a primeira vez que Guterres estendeu a passadeira a Durão. Mas não foi a única.

Com percursos políticos que, de quando em vez, se tocaram, Guterres e Durão são hoje os estadistas portugueses que conseguiram ascender a dois dos mais relevantes — e influentes — lugares do tabuleiro internacional: o de secretário-geral da ONU, que o ex-líder do PS assume em janeiro, e o de presidente da Comissão Europeia (CE), que o ex-primeiro-ministro de um governo de coligação PSD/CDS assegurou durante 10 anos. Três lugares, aliás, se, além desta dimensão político-diplomática, se tiver em conta o cargo de presidente não-executivo da Goldman Sachs International, um dos maiores bancos mundiais, que Durão acaba de assumir sob um fogo de críticas. Mas já lá vamos.
Apesar de durante anos terem andado – por acaso, ou não – no encalço um do outro, mais Durão que Guterres, quem conviveu com ambos é perentório em afirmar que são pessoas e políticos “com perfis completamente diferentes”, embora “ambos inteligentes e de grande craveira”.

Contactados pelo ECO, vários socialistas recusaram-se a fazer a comparação entre os percursos políticos destes dois senadores portugueses até ao topo do mundo, numa projeção nunca alcançada nos tempos mais remotos. Jorge Coelho, ex-braço-direito de Guterres nos seus dois governos, recusou qualquer comparação, e outros seguiram-lhe as pisadas. O ex-ministro socialista Guilherme d´Oliveira Martins também disse não querer comparar, mas admitiu que Guterres e Durão “têm perfis muito diferentes”, sendo também “diferentes” as funções internacionais que assumiram ou vão assumir. Já Ângelo Correia, ex-ministro do PSD, caracteriza o percurso de Guterres como mais perto dos “valores sociais e superior aos interesses”, enquanto Durão “se mexe mais” nos bastidores da estratégia política.

[Guterres e Durão] têm perfis muito diferentes.

Guilherme d'Oliveira Martins

Diferenças de perfis que, na ótica de alguns, determinou o percurso diferente de ambos após a saída dos governos de Portugal. Mas aqui têm um ponto em comum: também Durão abandonou o Executivo a meio do mandato. Guterres – como justificou naquela noite de 16 de dezembro – para evitar que o país caísse num “pântano político”, Durão para ser presidente do órgão executivo da União Europeia.

Um na ação social, outro na política

Quando José Manuel Durão Barroso nasceu, em Lisboa, a 23 de março de 1956, António Manuel de Oliveira Guterres estava a 37 dias de completar sete anos de vida, numa infância passada entre a capital do país e Donas, uma freguesia de Castelo Branco, de onde era natural a mãe e onde aprendeu a ler e a escrever aos quatro anos. O futuro secretário-geral da ONU, cargo para que foi recentemente indicado por unanimidade e aclamação, foi sempre dos melhores alunos da escola, feito igualmente conseguido por Durão Barroso. “São duas pessoas e dois políticos muito inteligentes”, diz ao ECO o eurodeputado socialista Carlos Zorrinho, que entrou na política pela mão de António Guterres. Zorrinho reconhece, contudo, “que são pessoas muito diferentes”, tendo Guterres mais o perfil de “moderador e de promotor de consensos” e Durão Barroso de “negociador”.

Na adolescência, passam os dois pelo Liceu Luís de Camões, em Lisboa, onde o ex-presidente da CE já revelava a sua veia política (lia tudo o que era jornal da oposição), enquanto Guterres optava pela ação social e religiosa.

Já no Instituto Superior Técnico (IST), onde entra em 1966 para se licenciar em Engenharia Química, o ex-líder do PS — com uma vincada educação religiosa (que manteve ao longo da vida) — assume a liderança do Centro Social Universitário e visita bairros sociais massacrados pela pobreza. Nesta altura, nas principais universidades do país viviam-se tempos quentes com as lutas contra o regime de Salazar.

"São duas pessoas e dois políticos muito inteligentes. Guterres tem um perfil de moderador e de promotor de consensos e Durão Barroso de negociador.”

Carlos Zorrinho

Eurodeputado

Guterres passou ao lado destas lutas e só mais tarde, na sequência das “injustiças” que diz ter visto nos bairros de ‘lata’, e após várias tertúlias no “Grupo da Luz” (do qual faziam parte Marcelo Rebelo de Sousa e o padre Vítor Melícias), é que se motiva para a vida política. Quando acaba a licenciatura com média de 19 valores, dedica-se à vida académica e casa, em 1972, com Luísa Melo.

É só pelo 25 de abril que adere ao PS, numa altura em que Durão Barroso já era sobejamente conhecido nos circuitos estudantis, sobretudo na Faculdade de Direito de Lisboa, por anos de luta anti-regime como o menino rebelde do PCTP/MRPP, tendo sido um dos líderes do FEM-L (Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas). Andava ainda Durão na extrema-esquerda quando, em 1976, Guterres se estreia como deputado na bancada do PS, perante as críticas de muitos socialistas por causa da sua ligação à Opus Dei.


Na altura, desconhecia-se ainda que o engenheiro de bigode e adepto do Benfica saído da vida académica do IST e o jovem rebelde da extrema-esquerda, de cabelo comprido, calças à boca-de-sino e colares de ‘missangas’, viriam a assumir papéis relevantes no país e no mundo, em lados opostos.

Percursos na política doméstica

Corria o ano de 1980 quando o nome do jovem Guterres, com apenas 31 anos, salta para os jornais por ter batido o pé ao então primeiro-ministro socialista, o histórico Mário Soares, que recusava apoio à candidatura de Ramalho Eanes. Une-se a Salgado Zenha (de quem sempre foi próximo), Vítor Constâncio e Jorge Sampaio e são famosas as reuniões conspirativas no sótão da sua casa de Algés. Neste mesmo ano, com 24 anos, Durão Barroso vira à direita e é levado pelo amigo Pedro Santana Lopes para o PSD.

Escassos anos depois, nos finais da década de 80, quando o futuro secretário-geral das Nações Unidas chega à liderança do grupo parlamentar do PS, do outro lado da barricada começa a despontar no então Executivo de Cavaco Silva um secretário de Estado: Durão Barroso. Responsável pela pasta da Cooperação, consegue virar as atenções para si ao mediar a paz em Angola (acordos de Bicesse) e ao meter a questão de Timor na agenda política. Mas este último caminho que iniciou viria a ser anos mais tarde fechado com sucesso por… Guterres, que, já chefe do Governo de Portugal, consegue sensibilizar os EUA e o mundo para a situação da ex-colónia portuguesa (subjugada por Jacarta).

Mas voltando um pouco atrás. 1992 é um ano marcante na carreira política de cada um: Guterres ascende à liderança do PS, Durão vê os seus esforços reconhecidos e sobe a ministro dos Negócios Estrangeiros. A ideia de chegar à liderança do partido já pairava na sua mente e já sabia que não podia perder Guterres de vista. Sabia, aliás, que o queria confrontar politicamente.

Por esta altura, enquanto ministro, Durão começa a fomentar os seus contactos internacionais, a aprimorar as suas competências diplomáticas e participa na primeira reunião do Bilderbeg, um dos clubes de diretório mais influentes do mundo. Viria a participar em, pelo menos, mais quatro reuniões. Diz-se que foi numa delas que começou a ser projetada a sua corrida à CE. António Guterres, aqui, perde em vários pontos, tendo participado apenas numa reunião do Bilderberg, em 2012, como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Em 1995, Durão Barroso faz a sua primeira tentativa de enfrentar diretamente António Guterres. Tenta a liderança do PSD para depois disputar eleições contra o líder socialista, mas perde a corrida para Fernando Nogueira e este, por sua vez, perde o país para Guterres, que sobe à cadeira de primeiro-ministro. Mas Durão não desarmou. Logo na altura avisou: “Tenho a certeza que serei primeiro-ministro, só não sei é quando”.


O embaixador António Monteiro diz que uma das principais características de Durão é precisamente a “determinação na ação”. No PSD, é conhecido por ser “combativo, teimoso, ambicioso” e por “só descansar” quando atinge o objetivo a que se propõe. No PS, a capacidade de “fazer pontes e o cunho social da sua personalidade” são duas das principais características atribuídas a Guterres.

Em 1999, já líder do PSD, Durão enfrenta Guterres pela primeira vez numas legislativas. E perde. O ex-primeiro-ministro leva vantagem e é reconduzido. É em 2002 que Durão Barroso consegue ganhar as eleições ao PS antes até do que esperava. Porquê? Porque Guterres se demitiu no final de 2001 e impôs eleições ao país. O PS não lhe perdoou a entrega do poder à direita. Como a direita não perdoou a Durão a ‘fuga’ em 2004 para Bruxelas. Com uma diferença: Guterres entendeu que o país devia ir a eleições e ganhou o PSD. Durão entendeu que não e manteve o governo na direita com a passagem do testemunho a Pedro Santana Lopes.


Os dois governos minoritários do ex-Alto Comissário da ONU para os Refugiados e antigo presidente da Internacional Socialista (IS) ficaram marcados por um pendor social, depois de anos mais tecnocratas de Cavaco. Guterres fazia do diálogo uma bandeira, liderava mais com o coração que com a razão, o que lhe valeu a imagem de político com dificuldade em decidir, apostou na educação e criou o rendimento mínimo garantido. Foi o primeiro-ministro da entrada no euro, mas foi também neste período que a despesa pública acelera. E muito.

Os dois anos de Durão Barroso ficaram marcados pelo anúncio do “choque fiscal”, que não viria a acontecer, pelo polémico apoio à invasão do Iraque e por uma política de maior rigor e contenção da despesa pública. Até porque a crise económica e as derrapagens do défice – que já vinham de trás – estavam a acentuar-se. Em comum, entre outros pontos, os governos de Guterres e de Durão Barroso tiveram o facto de baterem recordes em termos de nomeações políticas.

Em 2004, os dois homens que ascenderam como relâmpagos na vida política nacional e que chegaram ao topo para, depois, deixarem os governos e os respetivos partidos ‘à beira de um ataque de nervos’, viram os olhos para o exterior e lançam-se numa carreira internacional.

Depois de alguns anos como consultor do Conselho de Administração da CGD, Guterres regressa à ação humanitária e torna-se Alto Comissário da ONU para os refugiados, onde desenvolveu contactos em todo o mundo. Barroso foi liderar o governo da União Europeia, cargo que, curiosamente, Guterres tinha recusado anos antes. “Também teria dado um ótimo presidente da Comissão, seria ao estilo de Jacques Delors”, lamenta ao ECO o eurodeputado Carlos Zorrinho. O próprio Guterres reconheceu numa entrevista em 2012: “se alguma coisa me custou recusar foi a presidência da CE”.

O certo é que, ao recusar (justificou que “não tem ambição desmedida”), voltou a estender a passadeira a Durão Barroso, que dois anos depois recebe o convite. E aceita. “Ele tinha e tem um assinalável tato político e muita experiência e competência ao nível diplomático e internacional pelas funções que exerceu no país e essas características foram fundamentais para a presidência da CE”, diz de Durão Barroso o seu ex-chefe de gabinete Matos Correia.

No mesmo ano de 2012, estava o país a enfrentar um resgate, a austeridade e um apertado cerco da ‘troika’, António Guterres aproveitou uma rara conversa com a comunicação social para pedir desculpas aos portugueses pela “eventual” responsabilidade que os seus governos tiveram na crise económica. Na mesma altura, e sobre a mesma questão, o então presidente da CE descartou qualquer responsabilidade.

Os anos após o governo

Quem conhece António Guterres desde os tempos do IST reconhece que o ex-primeiro-ministro-socialista tem um perfil que se encaixa no de secretário-geral da ONU. Guilherme d’Oliveira Martins, seu amigo há 50 anos, destaca-lhe o “sentido de solidariedade e humanitário” que o futuro homem-forte das Nações Unidas revelou ter “em qualquer função que desempenhou”.

O ex-presidente do Tribunal de Contas realça que Guterres poderia “desempenhar o cargo que quisesse”. Nomeadamente o de presidente da CE. Ou o de Presidente da República, onde o PS desejou vê-lo como candidato no início deste ano. Mas Guterres já tinha outra ambição: a difícil corrida à ONU, a maior e mais influente organização humanitária mundial. Mais uma vez, do outro lado da barricada, surgiu Durão Barroso, o nome que PSD e CDS queriam ver na corrida a Belém pela direita. Mas também o ex-presidente da CE já tinha decidido abandonar a vida política nacional – como reconheceu Matos Correia ao ECO – e viria meses mais tarde a aceitar o cargo de presidente não-executivo da Goldman Sachs.

A decisão de Durão de presidir à instituição financeira que esteve envolvida na crise dos ‘subprimes’ e na maquilhagem das contas públicas da Grécia, dois anos depois de ter abandonado a presidência da Comissão, deixou chocada parte do país, da esquerda à direita, e a União Europeia. O atual presidente do Executivo comunitário, da família política europeia do PSD, decidiu, até, que Barroso passaria a ser tratado como um lobista e não como um ex-presidente da instituição. “Foi Durão que se desgraduou”, disse na altura o eurodeputado Carlos Zorrinho.

Dezassete anos depois de se terem confrontado diretamente, Guterres como primeiro-ministro e Durão como líder do principal partido da oposição, os dois políticos que adquiriram estatuto de senadores veem-se de novo em cargos de topo, mas agora internacionais, de perfis muito distantes e em lados diferentes da barricada.

António Guterres alcança por aclamação o posto mais elevado da ONU, perante um quase uníssono aplauso do país, da esquerda à direita, e do mundo. Marcelo Rebelo de Sousa classificou-o de “excecional” e a ex-governante social-democrata Teresa Gouveia elogia-lhe o facto de “não ter nenhuma subordinação a interesses que não o bem público”.

Mas, na reta final da corrida de Guterres, Durão Barroso parecia aparentemente estar no seu encalço, de novo. Um site de notícias europeu dava conta que Durão seria um dos promotores da repentina candidatura de Kristalina Georgieva, vice-presidente da comissão, à ONU. O que fez soar os alarmes em Portugal e na diplomacia portuguesa. Durão Barroso apressou-se a negar e, num artigo de opinião no Público, após a indicação de Guterres, veio felicitar o ex-adversário pela vitória.

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A aclamação e o aplauso conquistados por Guterres, que conseguiu a proeza de unir todos os partidos no Parlamento (numa altura de tanta crispação) num elogio ao primeiro português líder da ONU e às suas características, contrastam com as duras críticas, da esquerda à direita, que Durão Barroso tem recebido desde que decidiu ser presidente não-executivo da Goldman. “Inaceitável”, “subordinação a interesses”, “eticamente reprovável” e “erro crasso” foram algumas das reações vindas tanto dos partidos portugueses, como de vários Estados-membros da União, sobretudo dos franceses.

Apesar das acusações, Durão aceitou presidir ao banco de investimento, um dos mais influentes cargos do mundo, mas do lado do capital. Paulo Rangel, eurodeputado social-democrata, chegou a temer que a ida de Durão para a Goldman – pela imagem que Portugal podia passar à Europa e ao mundo – pusesse “em causa” a candidatura do ex-líder do PS a Bruxelas. Mas Guterres saiu incólume da subida de Durão ao topo do mundo privado da banca e à tentativa de última hora de colocar uma mulher do Leste na liderança da maior organização do mundo e vai mesmo liderar a organização que promove a paz no mudo.

António Guterres na ONU, Durão Barroso no Goldman Sachs. Os extremos tocam-se.

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