O Estado das rendas

A política de habitação devia fazer-se, sobretudo, de um Estado que se assume como senhorio concorrente dos privados, praticando ele as rendas acessíveis.

Em jeito de antecipação das comemorações do 25 de Abril, o Governo apresentou na semana passada um pacote de medidas que pretendem garantir o acesso à habitação. Eu confesso que o nome “Nova Geração de Políticas de Habitação” me deixou inicialmente algo confusa. É que o adjectivo – nova – sugere que teria havido uma geração de políticas destinadas a cumprir o artigo 65.ᵒ da Constituição, que confere a todos o direito a uma habitação condigna e que atribui ao Estado o ónus da salvaguarda desse direito. E, assim de repente, eu diria que durante anos e anos o Estado se demitiu desse papel.

Mas, em boa verdade, o congelamento de rendas foi uma política de habitação. Responsabilizou os senhorios por uma tarefa que era pública, teve efeitos desastrosos e não cumpriu o objectivo a que se propunha – o que, de resto, a teoria económica básica permitia prever, tal como possibilita que não nos surpreendamos por um leilão não ser a forma indicada de promover rendas acessíveis –, mas isso não obsta a que o consideremos uma geração de políticas de habitação. Devia obstar a que repetíssemos a experiência; no entanto, há quem a ela queira regressar: hoje é dia de serem votados os projectos de lei do PCP, dos Verdes e do Bloco de Esquerda, que parecem continuar sem compreender que tectos às rendas significam menos tectos para arrendar.

Também a bonificação dos juros do crédito à habitação configurou uma política. Uma que, entre 1987 e 2011, representou quase três quartos do Orçamento de Estado devotado à intervenção pública relacionada com a habitação. E, sobretudo, que promoveu o endividamento das famílias, num feudalismo dos tempos modernos, em que as pessoas se tornaram servas do banco onde tinham a hipoteca, presas à casa que haviam comprado com um empréstimo bancário.

Saúdo, pois, que, no pacote legislativo aprovado em Conselho de Ministros, se inclua uma lei que facilita a colocação destes imóveis no mercado de arrendamento, até por uma questão de mobilidade, coisa importante num país cheio de assimetrias regionais. Desconheço os pormenores do diploma, mas desde já faço votos de que a entidade reguladora disponha dos mecanismos para garantir que é efectivamente aplicado (e vão desculpar-me o cepticismo neste campo).

Desta velha geração de políticas resultou uma estranha circunstância: Fala-se da dificuldade de acesso a habitação, mas, ao mesmo tempo, há um número substancial de fogos devolutos. Ou seja, há pessoas que preferem ter as casas vazias a arrendá-las.

Na proposta de Lei de Bases da Habitação apresentada pelo PS, “as habitações que se encontrem injustificadamente devolutas ou abandonadas […] podem ser requisitadas temporariamente, mediante indemnização”. Se esta norma se coaduna com o artigo 62.ᵒ da Constituição é matéria que deixo para o debate entre juristas. Eu apenas me interrogo sobre quais as justificações admissíveis para ter uma casa devoluta (sendo que “porque me apetece” afigura-se-me razão consentânea com o direito à propriedade privada).

Tratando-se do património imobiliário do próprio Estado, acho muito bem que lhe dêem ocupação e podem começar precisamente por aí. E subscrevo a sugestão do Paulo Ferreira para a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa: colocar no mercado imobiliário para arrendamento o dinheiro que iria entregar ao Montepio. (Aliás, a Santa Casa nem precisa de fazer novas aquisições, basta-lhe usar o património que tem actualmente afecto ao alojamento local).

Por outro lado, como economista e em virtude de um certo posicionamento ideológico, prefiro sempre que os comportamentos sejam incentivados, em vez de se proibir, obrigar ou requisitar. O princípio subjacente à nova geração de políticas de habitação parece ser esse, o de promover a oferta de habitação pelo encorajamento da colocação de imóveis no mercado de arrendamento. Mas a eficácia da sua implementação suscita-me umas quantas dúvidas, até porque há pormenores que só serão definidos mais tarde, em portaria, e já se sabe que Deus (e o Diabo) é neles que está.

Em particular, a minha primeira reacção foi a de achar que uma plataforma onde não se pode escolher quem vai ocupar a nossa casa é pouco sedutor e que dez anos de contrato é muito tempo. E logo a seguir questionei-me se as rendas acessíveis entrarão para o próprio cálculo do valor mediano do metro quadrado. Depois, lembrei-me que o Estatuto dos Benefícios Fiscais já prevê taxas de IRS reduzidas para rendas cobradas em imóveis sujeitos a reabilitação urbana; Mas, aparentemente, o artigo 71.ᵒ não tem surtido grande efeito, talvez pela exigência de certificação do estado dos imóveis ou, quiçá, porque a fiscalidade acaba por não ser incentivo suficiente num país com um longo historial de instabilidade neste domínio, o que não me faz discordar em teoria que a ela se recorra como instrumento.

No fim, continuo a advogar que a política de habitação devia fazer-se, sobretudo, de um Estado que se assume como senhorio concorrente dos privados, praticando ele as rendas acessíveis. Mas espero que a Nova Geração de Políticas de Habitação faça jus ao nome.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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