Sem tecto

O PCP levou ao Parlamento uma proposta para mudar a lei do arrendamento, em que defende uma intervenção do Estado nos preços. A solução é outra, é a concorrência pública com os senhorios privados.

No passado dia 2 de Fevereiro, deu entrada na Assembleia da República um projecto de lei do PCP que pretende revogar o Novo Regime do Arrendamento Urbano. Eu não faço ideia de quais são, no jogo político (em que se negam à partida orçamentos de Estado que se desconhecem), as probabilidades de ver este texto aprovado, mas ele merece-me algumas reflexões.

E comecemos logo pela primeira frase, onde se afirma que «em média, mais de cinco famílias por dia são despejadas da sua habitação». Creio que estes dados são os do Balcão do Arrendamento, fornecidos pelo Ministério da Justiça, mas é dedução minha, porque a sua fonte não é dita. Um mau princípio. Não apenas do PCP, é generalizado. Por isso, deixo aqui o apelo para que, em futuras iniciativas legislativas, venham elas de que bancada vierem, a alusão a informação estatística refira a respectiva origem.

E, por falar em informação estatística, um pouco mais à frente no parágrafo, lê-se “não há registo de os contratos de arrendamento terem aumentado”, o que é invocado como prova de que Lei n.º 31/2012 não tinha o propósito de promover o arrendamento urbano. E há registo de os contratos de arrendamento terem diminuído?!, pergunto eu. É que, segundo sei, o INE não tem tal base de dados disponível. Portanto, talvez aquela frase deva ser lida como uma queixa relativa à falta de informação (um lamento com que eu estou solidária) e não propriamente como uma caracterização do que sucedeu no mercado imobiliário.

Mas admitamos que sim, que os contratos de arrendamento se estão a reduzir desde 2012, apesar de – assim o mostra a Pordata – o número de alojamentos em Portugal estar a aumentar (ao contrário da população) sem que Lisboa e Porto constituam excepção a esta tendência. Atribuir este putativo facto ao Novo Regime do Arrendamento Urbano carece de verificação empírica. Uma que tenha em conta os vários factores que afectam a procura e a oferta de imóveis para arrendar, tais como o nível de rendimento ou as taxas de juro; sem esquecer a preferência que os portugueses têm demonstrado pelo estatuto de proprietário, porque a expressão maior de pobreza é “não ter onde cair morto”. É que a taxa de divórcio no Maine também vai a par com o consumo per capita de margarina: chama-se correlação espúria.

Defende o PCP que “confiar o arrendamento urbano a mercados totalmente liberalizados, como a lei preconiza, só agravará ainda mais os problemas neste sector”. Ora, como elucidou Paul Krugman, num artigo publicado no New York Times, em 2000, impor tectos às rendas é uma excelente forma de contrair a oferta de casas para arrendamento. Seja porque, no imediato, essa opção deixa de ser interessante para os proprietários – e os senhorios também são pessoas, como os inquilinos, talvez seja preciso notá-lo –, seja porque, a longo prazo, o património imobiliário se degrada, já que não há motivo nem condições para o conservar.

O argumento não é especulativo: tivemos a experiência durante décadas, com os resultados que estão à vista. Ao contrário do que está escrito no projecto de lei, um mercado de arrendamento que não funciona livremente prejudica precisamente a população que se quer proteger. Até porque uma renda de 100 euros pode ser, na verdade, bastante elevada se pensarmos que é para pagar mensalmente uma casa onde chove e que se tem de partilhar com roedores. Não é assim que se respeita o artigo 65.º da Constituição. Há quase um ano, o relatório da ONU sobre habitação em Portugal apontava a falta de condições em que algumas pessoas viviam. Falava também da escassez de habitação social.

Não foi o artigo de 2000 que conferiu a Paul Krugman o Nobel da Economia. Trata-se de um raciocínio bastante elementar, que faz parte de qualquer manual introdutório de Microeconomia, exemplo clássico da ilustração dos efeitos distorcivos e perniciosos de não deixar o mercado funcionar. Aliás, eu aposto que o próprio PCP entende o mecanismo bastante bem. É só trazer-lhe o Ferraz da Costa, que qualquer um dos signatários do projecto de lei lhe será capaz de explicar que, se a procura de trabalho não está a encontrar a oferta, então é subir o salário, que o problema se resolve.

Claro que Ferraz da Costa vai retorquir que a generosidade do subsídio de desemprego e de outras medidas que tais leva a um aumento do preço de reserva dos trabalhadores. É que deixar o mercado funcionar não é sinónimo de não actuar sobre as condicionantes da procura e da oferta. É agindo sobre esta, nomeadamente constituindo-se como concorrente dos senhorios, que o Estado deve implementar uma política de habitação digna desse nome.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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