Até alguém explicar melhor. É milagre sim, senhor

Até o Governo se ter decidir avançar com o programa de regularização fiscal (PERES) e se ter optado por manter as cativações não era crível que se atingisse o défice orçamentado de 2,5%.

Comecemos por fazer justiça a Teodora Cardoso: não foi a presidente do Conselho das Finanças Públicas a puxar a palavra ‘milagre’ na entrevista que deu ao Público e à Rádio Renascença. Foi Graça Franco, diretora de informação da RR, quem lhe perguntou, já em jeito de piada, se teria havido um milagre. Pergunta à qual Teodora Cardoso acabou, após vários segundos de hesitações e risos, por responder “vamos lá a ver, houve, até certo ponto, um milagre, neste sentido…” e passou a justificar a resposta. É fácil perceber que, de moto próprio, nunca teria usado essa palavra. Que os meios de comunicação social que fizeram a entrevista, e muitos dos outros que se seguiram, tenham puxado o ‘milagre’ para o título ou para o destaque online, é só jornalismo pouco sério.

Enfim, como era previsível, o soundbyte lá pegou e até o Presidente da República veio puxar as orelhas a Teodora Cardoso, em mais uma evidência de que o PR e o Governo co-habitam tão bem que, não tarda, casam. Ninguém cuidou muito de saber exatamente os motivos que levaram a presidente do CFP a responder daquela forma, o que até não seria demorado porque a tese de Teodora é simples: até o Governo se ter decidir avançar com o programa de regularização fiscal (o designado PERES com um impacto em 2016 de cerca de 600 milhões de euros, 0,3% do PIB) e se ter optado por manter as cativações (cerca de 1.150 milhões de euros, 0,6% do PIB) não era crível que se atingisse o défice orçamentado de 2,5%. O argumento é tão claro quanto verdadeiro e não encerra nada de divino ou sobrenatural.

Há, no entanto, em minha opinião, um elemento adicional na execução orçamental de 2016 que constitui uma enorme surpresa relativamente a todos os modelos da economia portuguesa vulgarmente utilizados até agora. De acordo com esses modelos, a nossa economia só começa a gerar emprego de forma significativa – digamos, 1% da população ativa, ou seja, 50.000 empregos – quando cresce acima dos 2% a 2,5%. Pois bem, os dados mais recentes revelam que a economia portuguesa terá crescido 1,4% em 2016, bem abaixo do tal limiar, mas gerou nada mais, nada menos que 97.000 novos empregos. Isto, sim, à falta de explicação ou de revisão profunda dos modelos vigentes, é o que eu chamo um milagre.

Só para terem uma ideia, se este ritmo de criação de emprego corresponder a um novo modelo económico, o crescimento previsto para 2017 de 1,9% geraria mais de 100.000 empregos este ano e acabaríamos o ano com a taxa de desemprego na casa dos 7%. Seria uma excelente notícia, em especial para os desempregados de longa duração e para os mais jovens. Mas percebe-se que haja algum ceticismo quanto à viabilidade deste cenário.

Porque é que isto é importante no contexto da discussão do défice de 2016? Porque o aumento do emprego, e a correspondente redução do desemprego, são o principal fator que explicam uma brutal poupança nas Prestações Sociais de cerca de 1250 milhões de euros, quase 0,7% do PIB. Este efeito foi tão inesperado, que o Governo acabou por apresentar um défice de 2,1%, quando um mês antes previa atingir 2,3%, tendo apenas o compromisso de chegar a 2,5%. Não admira que BE e PCP tenham ficado possessos com este overshooting.

Em que ficamos? A economia portuguesa mudou mesmo de modelo? Vai continuar a criar emprego a este ritmo, com isso gerando mais receitas em IRS e contribuições para Segurança Social e permitindo reduções nos apoios sociais?

Se assim for, o Governo de António Costa terá uma enorme vitória política e a oportunidade histórica de iniciar uma trajetória descendente e sustentada do nosso endividamento, o que é vantajoso também num cenário de eventual reestruturação futura da dívida a nível europeu. À vitória política de Costa corresponderá uma profunda derrota de Passos Coelho e da direita em geral porque afinal ‘havia alternativa’ aos sacrifícios pedidos aos portugueses.

Pela dimensão dos impactos económicos e políticos é fundamental explicar cabalmente o que aconteceu à estrutura da economia portuguesa, em especial ao nível da criação de emprego em 2016. Sem essa explicação, só fica descansado quem acredita em milagres.

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