Susana Albuquerque: “Crianças portuguesas têm muita curiosidade em saber como funciona o dinheiro”

Susana Albuquerque, especialista em educação financeira, diz que as crianças portuguesas são muito curiosas em relação ao dinheiro. Mas defende a necessidade de mais formação para os professores.

“É de pequeno que se torce o pepino”. O ditado popular encaixa-se na perfeição naquela que deve ser a educação financeira das crianças. Entre os dois e os três anos de idade, é considerada como a idade ideal para começar a incutir nos mais jovens as bases da formação financeira. Quem o diz é Susana Albuquerque, gestora da ASFAC (Associação de Instituições de Crédito Especializado) onde tem desenvolvido programas de responsabilidade social na área da educação financeira.

Em entrevista ao ECO a propósito do Dia da Criança que se celebra esta sexta-feira, esta especialista partilhou algumas dicas sobre a melhor forma de preparar os mais jovens no sentido de se tornarem adultos financeiramente responsáveis. Falou também dos principais desafios para os pais, as iniciativas que as entidades responsáveis têm levado a cabo no sentido de melhorar a literacia financeira, mas também sobre aquilo que ainda falta fazer.

Até que ponto é realmente importante a educação financeira das crianças?

A educação financeira é um instrumento de capacitação para a autonomia financeira, que é essencial para uma cidadania plena. Falamos em cidadania financeira, porque as nossas decisões financeiras — seja o emprego que quero escolher, quanto quero poupar, onde quero viver, ou com que estilo de vida quero viver — precisam de ser conscientes, e ter informação não é suficiente. Isto porque existe um espaço entre o que racionalmente todos sabemos que é importante e aquilo que acabamos por fazer.

O problema não é só o dinheiro não esticar ou não ser suficiente. Tem a ver com o facto de não termos tido oportunidade de treinar como funciona o dinheiro, a gratificação, a poupança ou o ser empreendedor.

E muitas vezes, o problema não é só o dinheiro não esticar ou não ser suficiente. Tem a ver com o facto de não termos tido oportunidade de treinar como funciona o dinheiro, a gratificação, a poupança ou o ser empreendedor. Tudo isso faz parte das competências base do dinheiro e da consciência de cidadania na área financeira.

Os pais têm noção da relevância desses ensinamentos para os filhos?

Penso que sim. E na crise isso foi muito notório. Os pais querem, mas muitas vezes não sabem é como. Às vezes parece difícil compatibilizar com as coisas que aprendemos por educação: que não se deve falar sobre dinheiro, ou não se fala sobre dinheiro à mesa ou que o dinheiro é sujo. Há uma série de crenças coletivas em relação ao dinheiro que às vezes impedem que os pais saibam quais é que são os melhores instrumentos para ensinar aos filhos como gerir o dinheiro.

Uma das coisas que fazemos nas formações que damos é explicar aos pais como é que as semanadas ou as mesadas são os melhores instrumentos de educação financeira. O nosso trabalho é dizer-lhes de que forma é que os podem usar, de maneira consciente e seguindo determinados princípios, para fazer a educação financeira que eles desejam e reconhecem que é importante. Outra coisa importante, é recordar aos pais a importância da haver coerência entre aquilo que ensinam e aquilo que fazem.

"Há uma série de crenças coletivas em relação ao dinheiro que às vezes impedem que os pais saibam quais é que são os melhores instrumentos para ensinar aos filhos como gerir o dinheiro.”

Existem diferenças na forma como as mães e os pais abordam a educação financeira dos filhos?

O que é essencial é que os pais conversem entre si sobre o que acham deve ser transmitido sobre o dinheiro aos seus filhos. Normalmente, não existe uma conversa expressa sobre isso. É preciso encontrar a zona comum de valores. Por exemplo, quando os pais estão separados é mais claro para a criança ver como é que o pai e a mãe gerem o dinheiro, porque eles o fazem separadamente e, com escolhas muito diferentes. O ideal é que pai e mãe consigam pôr-se de acordo sobre uma base comum de como os filhos podem aprender a gerir o dinheiro de uma forma objetiva. Quanto mais os pais conversarem com naturalidade e abertura sobre quem faz o quê, tornando consciente essa educação, mais fácil ela se torna.

Face a outros países, qual é a perceção que tem sobre a forma como as crianças portuguesas lidam com o dinheiro?

As crianças portuguesas são muito aptas a lidar com o dinheiro. A perceção que temos de estudos de caso é que rapidamente aderem e têm imensa curiosidade em saber como funciona o dinheiro. É muito comum, crianças do segundo terceiro ano de escolaridade, não saberem como é que se faz para ganhar dinheiro. Já encontrei muitas crianças do terceiro ano a dizerem que os pais pagam para trabalhar. São crianças que tinham noção de que se os pais tinham de pagar para os filhos estarem na escola, estes também precisavam de pagar para ir trabalhar. Isto é muito curioso, por que nos mostra que às vezes o que é óbvio para nós adultos não o é para eles.

As crianças portuguesas são muito aptas a lidar com o dinheiro. A perceção que temos de estudos de caso é que rapidamente aderem e têm imensa curiosidade em saber como funciona o dinheiro.

O Governo prometeu que no próximo ano a educação financeira vai integrar os currículos das escolas. Espera então que esta medida possa fazer a diferença na formação financeira dos mais novos?

Sim. Mas há uma coisa que é preciso notar. A educação financeira, como qualquer tipo de educação, é um exercício de médio e longo prazo. É preciso treinar essas competências do dinheiro ao longo de vários anos. É preciso treinar para que se tornem automáticas.

As medidas tomadas pelas entidades responsáveis nesse âmbito são suficientes ou há mais que poderia ser feito? O quê?

É essencial que a promessa do Ministério da Educação seja uma realidade. Isto é, que a educação financeira faça parte das disciplinas obrigatórias como a matemática ou o português, ou que seja incluída a possibilidade de encastrá-la nas várias disciplinas. Se ela for diluída, a probabilidade de as crianças irem naturalmente aprendendo é muito maior. Os resultados de outros países dizem-nos isso.

Precisamos de formar professores, as crianças, mas à volta ter um ecossistema de consciência financeira.

E, para esse resultado, achamos que é preciso formar os professores e ir reciclando os professores. Porque tudo isso também é novo para eles. Os professores fazem parte de uma geração em que não se falava sobre dinheiro. Agora é que começamos a torná-lo uma questão objetiva. Por isso, faz falta a formação de professores e informação na comunicação social.

É importante que criemos um ecossistema de apoio. Não é colocar todas as nossas apostas em que as crianças e os jovens vão alterar o comportamento dos adultos. Precisamos de formar professores, as crianças, mas à volta ter um ecossistema de consciência financeira que permita que os pais pelo menos estejam despertos e saibam que podem fazer a diferença e conseguir resultados melhores nesta área.

A partir de que idade se deve começar a “plantar” nos mais pequenos a educação financeira? Nesse processo, há ensinamentos prioritários? Quais?

A partir dos dois, três anos, as crianças começam a pedir coisas, porque tomam consciência que o mundo à sua volta tem muitas coisas apetecíveis. Este é o momento de iniciarmos a educação financeira, começando por explicar, por exemplo quando vamos ao supermercado, que não podemos comprar tudo o que nos apetece. Este é o momento para começarmos a ensinar a saber esperar para ter. Esta é a primeira fase.

E numa segunda fase?

A segunda fase começa quando eles vão para a escola primária por volta dos seis, sete anos de idade. É quando se começa uma nova fase de autonomia, por isso é a altura ideal para se introduzir as semanadas. Começamos por dar um euro por semana e por introduzir os “três mealheiros”: um para gastar, outro para poupar e outro para doar. Devemos dar esse euro em dez moedas de dez cêntimos, para eles decidirem quanto é que vão gastar, quanto é que vão poupar e quanto é que vão doar. Nesta idade, tudo tem que ser muito concreto.

E quando se deve passar para a mesada?

A mesada é numa fase um pouco mais tarde, a partir dos dez ou 11 anos. Quando eles já tiveram prática de gerir o dinheiro durante uma semana, podemos começar a passar para duas semanas e depois para o mês. Ou seja, a mesada. Isto é o ideal. Mas se estivermos perante o caso de um adolescente que nunca teve uma semanada, se calhar antes de começar por lhe dar mesada, devemos começar por uma semanada.

É mais difícil de educar financeiramente na adolescência?

Depende. Depende de como é que foi a infância e a pré-adolescência. O grande desafio da adolescência é que eles têm um sentimento de pertença ao grupo fortíssimo, e isto muitas vezes gera desejos de consumir. Agora, se já tivermos começado esta educação para “ser em vez de ter”, isto já lhes permite encarar essa pressão para ser igual aos outros membros do grupo de uma maneira diferente.

De qualquer maneira, a experiência também nos diz que essa é a altura ideal para que eles começarem a desenvolver as suas iniciativas para ganhar um pouco mais de dinheiro. Por exemplo, no programa de educação financeira que nós desenvolvemos, uma das competências é “empreender”. A adolescência, por um lado é desafiante, mas também por isso é uma ótima altura para, no caso de não se ter desenvolvido antes a educação financeira, começar a fazê-lo.

A partir de que idade deve ser dado acesso aos mais novos a uma conta bancária ou usar um cartão de débito ou recarregável?

Muitas escolas já impõem os cartões recarregáveis desde muito cedo. Mais uma vez, esta é uma oportunidade de formação financeira. O cartão deve funcionar associado a um orçamento, em que devem ir acompanhando quanto é que vão gastando. A partir dos 16 anos podem ter, juntamente com os pais, uma conta bancária, mas em que vão também seguindo o dinheiro. Mas o ideal é que já tenham tido mesada em dinheiro, para poderem passar do concreto para o abstrato. O cartão de débito é um instrumento muito mais abstrato.

O dinheiro virtual vem tornar ainda mais premente a educação financeira porque há um distanciamento em relação ao que ele é.

Até que ponto o dinheiro digital não tornou mais relevante a educação financeira das crianças?

O dinheiro virtual vem tornar ainda mais premente a educação financeira porque há um distanciamento em relação ao que ele é. Daqui a cinco anos a nossa conversa vai ser completamente diferente, porque muito provavelmente o meio predominante vai ser o dinheiro virtual. O dinheiro como o conhecemos estará em vias de extinção. É precisamente pela crescente virtualização do dinheiro que a educação financeira é tão importante.

"O dinheiro virtual vem tornar ainda mais premente a educação financeira porque há um distanciamento em relação ao que ele é.”

Numa altura em que os pais se preocupam cada vez mais em dar aos filhos o que de melhor existe, tornou-se mais difícil ensinar o valor ao dinheiro e a importância dos hábitos de poupança?

Quando o meio é financeiramente mais abundante, é mais difícil que as crianças tenha consciência do valor do dinheiro. Por isso é que as mesadas e as semanadas são tão importantes, quer os pais tenham mais ou menos dinheiro. Quando as crianças sabem que têm um orçamento para gerir, começam a valorizar muito mais o dinheiro.

Num contexto de juros historicamente baixos, não é mais difícil transmitir aos mais novos a noção de poupança?

A questão dos juros serem baixos e serem um desincentivo a que os pais poupem para os filhos tem a ver com a conjuntura da economia. Mas não é isso só por si que lhes vai ensinar o valor da poupança. O que é importante é que tenham a experiência do que é poupar. E mais uma vez, isso faz-se com o treino de competências.

  • Paula Nunes
  • Fotojornalista

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