Voltar ao manifesto dos 74

O presidente da CIP recuperou a ideia da reestruturação da dívida pública. A ideia de reestruturar a dívida é tentadora. Mas muito cuidado com o efeito de ricochete.

O assunto há muito que é discutido. Mas esta semana, pela voz de António Saraiva, presidente da CIP, a reestruturação da dívida pública portuguesa voltou ao topo da agenda mediática. Que disse então o patrão dos patrões? Ora, afirmou Saraiva que “é necessário que a Europa saiba encontrar uma solução para a dívida de países como Portugal”.

O presidente da CIP referiu-se ainda defensor de um pacto de regime para o problema da dívida pública, uma solução que aliviasse “as pesadas mochilas que países como Portugal continuam a manter”. Recuemos, pois, ao célebre manifesto dos 74, de Março de 2014, para recordarmos os termos que então foram propostos para a reestruturação da dívida pública.

O manifesto dos 74 continha essencialmente três condições:

  1. Abaixamento da taxa média de juro.
  2. Alongamento dos prazos da dívida.
  3. Reestruturar, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB.

Seria um modelo idealizado e executado no quadro legal da União Europeia, permitindo, conforme os subscritores do manifesto então sublinharam, de forma sublime aliás, que até a Alemanha pudesse beneficiar do novo mecanismo institucional!

Três anos volvidos, o plano dos 74 continua por executar e, que se saiba, a Alemanha não tem intenção de o usar. Na verdade, não se vislumbra no seio da União Europeia vontade política que permita pensar que o mesmo possa sequer ser discutido. O mesmo sucede dentro de portas, em Portugal, onde nem mesmo entre a maioria parlamentar de esquerda se afiguraria consenso quanto à sua operacionalização.

É, de facto, infeliz coincidência que o redescoberto clamor pela reestruturação da dívida pública tenha surgido poucos dias antes de a Grécia ter ajoelhado, pela enésima vez, às exigências dos credores, em resultado da irredutibilidade destes em aliviar os gregos da sua dívida.

Credores oficiais que não querem ouvir falar de perdões de dívida e que também não abdicam de ter o FMI a bordo porquanto encontram no FMI a disciplina orçamental que hoje não vislumbram na Comissão Europeia. Uma Comissão Europeia “assumidamente política”, nas palavras do nosso comissário Carlos Moedas, mas que é olhada de soslaio pela Alemanha e não só.

É, pois, neste bloqueio institucional europeu que a elevada dívida pública nacional causa especial consternação, tornando Portugal um acidente (sempre) à beira de acontecer.

Segundo uma recente apresentação a investidores realizada pelo Instituto de Gestão do Crédito Público (disponível no sítio oficial), a dívida de Portugal aos credores oficiais soma agora 68 mil milhões de euros – pouco menos de 40% do PIB. O empréstimo do FMI é o mais caro: para prazos de reembolso a 6 anos, o fundo cobra-nos 4,5% ao ano. Já os da União Europeia contemplam prazos de reembolso que chegam a atingir os 20 anos e taxas de juro que começam nos 2%. No total, a maturidade média destes empréstimos é de 13 anos, aos quais está implícito um custo médio anual de 2,7%. Ou seja, condições bem mais generosas do que aquelas que Portugal obteria caso fosse autonomamente aos mercados. Para tal, basta recordar que para emissões soberanas a dez anos a taxa de juro exigida em mercado à República Portuguesa é de 4%.

O problema, como se depreende dos dados do IGCP, é que o fim da reestruturação da dívida pública acima de 60% do PIB, seguindo a recomendação dos 74, não bastaria aquela que está nas mãos dos credores oficiais, que não chega a 40% do produto. No modelo avançado pelos 74, a dívida a reestruturar seria na verdade de 70% do PIB (a parte da dívida pública superior a 60% do produto), o que já nos levaria para o domínio dos investidores privados e muito provavelmente dos investidores privados portugueses.

Pior ainda, levar-nos-ia para o domínio da banca portuguesa, onde o impacto de uma reestruturação mal conseguida se faria sentir através de imparidades adicionais. Impacto esse que acrescentaria aos NPL’s de crédito, deteriorando ainda mais a posição de capital dos bancos nacionais.

Seria, pois, importante que quem viesse agora discutir a reestruturação da dívida o fizesse após renovada reflexão, em particular numa altura em que a Europa não quer ou não consegue encontrar solução para países como Portugal.

O manifesto dos 74 que aqui trouxe à liça seria um bom ponto de partida. Porque à medida que a dívida pública total aumenta, ao mesmo tempo que vai diminuindo a dívida aos credores oficiais, a proporção da dívida pública detida por investidores privados, designadamente investidores privados residentes, aumenta também. E, portanto, aumentariam assim os riscos associado a uma eventual reestruturação, acontecesse esta na versão ‘português-suave’ ou na versão ‘ir-buscar-a-quem-está-a-acumular’. A ideia de reestruturar a dívida é tentadora. Mas muito cuidado com o efeito de ricochete.

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