Tudo a arder. E o Governo?

José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, a atualidade do país e do mundo. Esta semana, sobre o discurso de António Costa e Relatório Independente de Pedrógão Grande.

O discurso do primeiro-ministro quatro meses depois de Pedrógão Grande?

É um discurso feito por um daqueles responsáveis de comunicação de má qualidade que pululam no Estado. Para dizer o que ele [António Costa] foi dizer, uma mão-cheia de nada, um conjunto de banalidades, um discurso requentado sobre o que já foi dito, melhor faria estar calado.

De facto, não se compreende que não tenha sido possível, ao fim destes meses todos, aproveitar esta oportunidade para dizer o que vai fazer. Tinha programado um conselho de ministros para o próximo sábado, mas não tinha programado este incêndio de domingo. Antecipar as reações, nada justifica que se espere quatro meses para anunciar um conjunto de iniciativas que competem ao governo, obviamente usando tudo que há, designadamente o excelente Relatório da Comissão Independente, que é o essencial que se fale hoje. Ontem à noite [domingo], o primeiro-ministro, o secretário de Estado dos incêndios, a ministra, estavam realmente num momento péssimo, estavam nervosos, só disseram disparates, só disseram coisas que não se podem dizer. E hoje parece que continuamos na mesma.

Porquê? O Estado não pensa no território, o Estado pensa no sítio onde está muita gente que vota, portanto, a atenção que se deu aos enfermeiros choca, por contraste, hoje com a atenção que não se deu aos que estavam a sofrer por causa dos fogos. É muito mais importante, politicamente, fazer um acordo com os enfermeiros do que fazer um acordo para resolver os problemas destes senhores que estão a morrer pelo país fora. Pelo país fora, não se mobilizam, não chegam à televisão.

Passemos ao muito crítico Relatório Independente, que, depois da tragédia de ontem, já parece que não foi tão critico como deveria ser. Foi elaborado por uma equipa de excelência, produziu conclusões com uma decisão unânime e dentro do prazo.

Com exceção do residente da Câmara de Pedrógão Grande, que se atirou ao Relatório como gato a bofe, parece que se gerou um silencioso consenso nacional. O que me preocupa… Tanto silêncio assusta, tanta unanimidade sugere culpas no cartório, tanta prudência sugere vontade de baralhar e voltar a dar sem mudar as cartas.

O Relatório Independente envergonha, não deixando ninguém em bom estado, isto é, autoridades nacional e locais de Proteção Civil (claramente os maiores culpados), bombeiros, militares, comunicações, autarcas, governos, legisladores, meteorologistas, quem dá ordens aos meios aéreos, as autoridades que se deslocaram a correr para aparecerem na fotografia, e só foram atrapalhar.

O Relatório Independente, sobretudo, envergonha Portugal. Porquê? Os erros na cadeia de comando do MAI e ANPC, o amadorismo no combate ao fogo, a incompetência, impreparação, desconhecimento do terreno e da ciência do ataque aos incêndios, os conflitos de prestígios – “procura de protagonismo” – e de poderes – “o posto de comando operacional estava permanentemente superlotado, desorganizado, desorientado, descoordenado, com as autoridades políticas a intervirem também nas decisões operacionais”. Mas não só. Também a falta de planeamento e de prevenção – “planeamento, preparação, treino e ação” e a politização das autoridades de proteção civil.

Fica a sensação de que não era difícil ter evitado a tragédia, mas que daqui vão apenas sair paliativos, e tudo se vai repetir ano após ano, com as alterações climáticas a piorarem tudo isto.

Não é para ser politicamente correto, para fazer carreira política ou para fazer amigos, que aqui estou. Tenho, por isso, de dizer a (minha) verdade. Este relatório confirma, afinal, o que todos sabemos, mas preferimos não dizer.

O quê? A questão do combate aos fogos florestais tem de ser alterada de alto a baixo. Somos profissionais nas Forças Armadas, nas forças de segurança, mas não nas forças que deveriam dedicar-se à luta contra fogos, todo o ano e não apenas nas horas vagas ou para serem relevantes politicamente a seguir.

Eu sei que há heroísmos, que há dedicação, que há sacrifícios – isso merece o nosso respeito e admiração –, mas também sei que há 64 pessoas que morreram e que o Relatório demonstra que não deveriam ter morrido.

No Leopardo, notável romance e deslumbrante filme, o Príncipe de Salina dizia que “é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. O Governo vai reunir com pompa e circunstância esta semana e seguramente vai querer aplicar essa sábia, cínica e perversa máxima – mas os fogos de 2ª feira têm de obrigar a que haja coragem – mas não acredito. Porquê? Porque somos nós que não queremos que isto mude e os políticos gostam de nos dar o que queremos.

Querem fazer um teste? Vejam se na proposta de Orçamento do Estado se prevê alguma coisa para mudar tudo, de alto a baixo, como terá de ser. Não, aliás, a palavra “incêndio” apenas surge seis vezes em 328 páginas. Querem outros? Vejam se, no próximo sábado, o Conselho de Ministros Extraordinário:

  1. Cria um corpo de bombeiros profissionais de âmbito nacional.
  2. Cria uma brigada militar especializada em colaborar na batalha.
  3. Cria campanhas de sensibilização das populações pelo menos tão fortes como contra o tabaco, o ambiente e a prevenção rodoviária.
  4. Cria cursos para ministrar a formação obrigatória e contínua para prevenção e combate a incêndios, exigindo que as autoridades neste campo tenham essa formação obrigatória.
  5. Aplica à floresta pública e privada os sistemas de prevenção e combate das empresas de celulose.
  6. Aplica os instrumentos jurídicos existentes para o ordenamento do território, criando incentivos financeiros e fiscais muito fortes e motivadores.
  7. Não hesita em expropriar sempre e na medida em que, sem isso, não haja alternativa para manter a floresta limpa, tratada, protegida.

No fundo, e para terminar, voltemos ao Orçamento. Não faltam nas suas 328 páginas incentivos para arrendamentos longos, para partilha de carros e bicicletas, redução de IVA para instrumentos musicais, 3500 professores a mais, e também há cerca de 50 milhões de euros para prevenção. Mas nem um euro para fazer as grandes e essenciais reformas.

Uma última palavra para a ministra da Administração Interna. Dizia-me há dias alguém, que sabe do que fala, que os incompetentes nomes principais da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) foram escolhas pessoais do primeiro-ministro, não da ministra. Se for assim, percebe-se que não haja coragem para a mandar embora, mas se não for assim, ela só fica para servir de fusível e evitar que mais acima se chamusque alguém…

O Cantinho da Tontice

Hoje, tem também a ver com o incêndio de Pedrógão Grande. O presidente da Comissão Independente revelou que o helicóptero disponível para acudir de imediato estava a 41,7 kms, mas não foi usado, pois só poderia deslocar-se no máximo 40 kms!
Eu sei que deve haver um regulamento qualquer que o determina, mas não havia ninguém que desse um berro e um murro numa mesa e mandasse infringir o regulamento?

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