Por quem os sinos dobram no Web Summit

Paddy Cosgrave pediu desculpas porque "é irlandês". Nós devíamos pedir desculpas porque somos portugueses.

É o caso do fim de semana: o repasto de Paddy Cosgrave e dos seus colegas do Web Summit no Panteão Nacional.

A notícia do jantar na Igreja de Santa Engrácia caiu mal e Marcelo Rebelo de Sousa reagiu assim: “De facto, a imagem que eu tenho do Panteão Nacional não é de ser um local adequado para um jantar, nem que seja o jantar mais importante de Estado”.

Marcelo tem razão. Não faz sentido fazer uma festarola e comer no lugar onde estão enterrados os corpos de algumas das mais importantes personalidades da História portuguesa. Não faz sentido mandar uns caroços de azeitona para cima da campa de Almeida Garrett, entornar um copo de vinho para cima do túmulo de Humberto Delgado ou incomodar Sophia de Mello Breyner ou Amália Rodrigues com o cheirinho de soufflé de bacalhau, farinheira de porco preto ou trouxas de queijo de cabra com vinagrete de mel.

Até aqui estamos todos de acordo. Todos, menos João Soares. “Não me repugna nada, nem me causa embaraço”, diz o primeiro ministro da Cultura de António Costa ao Expresso. Porquê? Porque, pelas imagens que viu, “seriam 15 ou 20 filas e mesas, não seriam tantas pessoas assim”. Ok, é um bom critério: se forem poucos comensais, a coisa até passa; se forem muitos convivas a coisa já é repugnante.

E o que diz o atual ministro da Cultura de António Costa? Em linguagem jurídica, diz que a decisão foi tomada ao abrigo do Despacho 8356/2014, de 24 de junho de 2014, adotado pelo anterior Governo. É o que, em linguagem técnica, chama-se sacudir água do capote.

Mas Luís Castro Mendes não tem culpa quando o mau exemplo vem de cima. António Costa tem razão quando diz que “a utilização do Panteão Nacional para eventos festivos é absolutamente indigna do respeito devido à memória dos que aí honramos”. Mas perde a razão quando a primeira coisa que tenta fazer é atirar as culpas para o anterior Governo: “Apesar de enquadrado legalmente, através de despacho proferido pelo anterior Governo, é ofensivo utilizar deste modo um monumento nacional…”.

Há uma frase que é atribuída a Sá Carneiro que a terá dito certo dia aos seus ministros: “Meus senhores, têm seis meses para criticar o anterior Governo, a partir de agora a culpa é nossa”.

António Costa está há mais de dois anos a governar e tudo o que acontece de mal é culpa do Governo anterior: são os incêndios, é a dívida, é a legionella, são os pagamentos em atraso, é o Urban Beach, são os impostos, é o roubo de Tancos, são os lesados do BES, é a chuva que não chove, são as cativações. Para quem é tão acrítico em relação ao Governo de José Sócrates, recomendava-se-lhe menos criticas ao Governo anterior.

Por isso é que quando Passos Coelho anunciou que ia sair da liderança do PSD, metade do Governo e da geringonça levou as mãos à cabeça a pensar quem iam culpar agora por todos os males que assolam a humanidade.

Se é verdade que o tal Despacho 8356/2014, que aprovou Regulamento de Utilização dos Espaços, foi aprovado pelo anterior Governo de Passos, também é verdade que diz que as autorizações “devem salvaguardar a dignidade de cada espaço” e que devem ser rejeitadas se tal não acontecer.

E quem deu a autorização para o festim do Web Summit junto da campa do Eusébio? Aparentemente, a Direção-Geral do Património Cultural, que está sob a tutela do Ministério da Cultura deste Governo.

Dito isto, não quer dizer que, com o Governo anterior, as coisas teriam sido muito diferentes. Como nos contava este sábado o Observador, os mortos do Panteão estão longe de estar a ter o merecido descanso eterno. Com este Governo, a empresa pública NAV (Navegação Aérea) já tinha organizado um jantar no Panteão Nacional e com o anterior Governo também a empresa Dynamic & Partners teve um banquete na nave central do dito Panteão.

Este jogo de ‘passa culpas’ e de hipocrisia política atingiu talvez o seu ponto mais alto, mais refinado e requintado com esta reação à polémica por parte da dirigente do Bloco de Esquerda, Joana Mortágua: “Sim, é uma vergonha. Mas a direita que não se faça desentendida. Meteram o país à venda. Tudo se privatiza, vende ou aluga. Depois indignam-se porque uns poderosos do empreendedorismo compram o Panteão para jantar com vista para a Amália e a Sophia”.

Mais indigno do que pôr a robô Sophia a comer ao lado da poetisa Sophia, ou comer à tripa forra no lugar onde descansa (ou tenta descansar quando não há jantares) o general sem medo, é ter de assistir a este triste papel a que se prestam os políticos.

Depois da polémica, o fundador do Web Summit veio pedir desculpas pelo jantar no Panteão e explicar que os irlandeses têm uma maneira diferente de olhar para morte, num post no Twitter que começa com esta frase: “Querido Portugal, eu peço desculpa. Sou irlandês”.

Apetece responder: “Querido Paddy, nós somos portugueses, e nem sequer sabemos pedir desculpas”.

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