Os bancos e os incentivos para a asneira

Quando o foco comercial de uma instituição está no volume de negócio e no número de contratos ou de produtos financeiros que são vendidos, estamos a meio caminho para a asneira.

Esta quinta-feira à noite, à entrada do fim-de-semana prolongado, o meu banco resolveu fazer-me uma pergunta por sms: “Sabia que é possível contratar crédito pessoal mesmo durante o fim de semana? (TAN 9%; TAEG 12,4%) Informe-se em xxxx.pt e simule na App ou Netbanco.”
Eu, confesso, não sabia. Mas fiquei a saber várias coisas.

Primeiro, que a abordagem feita desta forma tem implícito tudo aquilo que a contratação de um crédito não deve ser. Como ninguém contrata créditos pessoais como passatempo apenas para ocupar uns minutos numa tarde de sábado, o apelo é claramente destinado a uma reacção impulsiva, daquelas que na nossa cabeça não podem esperar pela manhã de segunda-feira. Estamos na época das compras de Natal, os apelos são demasiados, a nossa bondade e vontade para oferecer é, por regra, muito superior à conta bancária, queremos dar o melhor aos nossos e a nós próprios. E agora até nos dizem que a austeridade acabou, que para o ano vamos pagar menos IRS, afinal o que é que pode correr mal?

Pede-se ao cliente que faça tudo ao contrário do que deve ser a decisão de contratação de um crédito: ponderada, estudada, com as contas bem feitas e vários cenários em cima da mesa.

Antes deste sms – que, imagino, deve ter versões correspondentes de outros bancos – já tinha sido notícia a oferta de “créditos pré-aprovados” por parte de algumas instituições financeiras.

Aqui os sintomas são mais graves. Se alguém diz que tem um “crédito pré-aprovado”, das duas uma: ou está a enganar o cliente, porque afinal o crédito ainda vai ter que ser decidido em função dos rendimentos, risco, garantias, etc.; ou está a violar o dever de zelo e de gestão prudente que está implícita na licença dada pelo Banco de Portugal para exercer a actividade, já que aprovações “cegas” não parecem compatíveis com qualquer avaliação prévia e séria de risco.

Claro que os bancos têm que oferecer e promover os seus créditos. É com eles que ganham dinheiro – embora cada vez menos, com o peso crescente das comissões cobradas -, é através deles que captam novos clientes e são estes vínculos – sobretudo os de mais longo prazo, como os que se destinam à compra de casa – que ajudam a segurar negócio.

Pedir aos bancos que sejam discretos na oferta de crédito é como pedir a um supermercado que não faça alarido com as suas mercearias e produtos frescos ou a uma loja de roupa que evite saldos nem cuide da montra.

Pois é, é contra natura. A grande diferença é que quando os donos ou gestores dos supermercados ou das lojas de roupa exageram nas promoções e não cuidam bem do seu negócio e este tem que fechar, os contribuintes não são chamados a pagar, directa ou indirectamente, pelo menos uma parte dessa factura, nem há depositantes com as suas poupanças em risco.

Outros haverá certamente, mas estes são apenas alguns sinais que nos fazem questionar se teremos aprendido alguma coisa do que se passou na última década, depois dos excessos da década que a precedeu.

E essa aprendizagem e alteração de práticas e procedimentos não pode ficar-se apenas pelos organismos de supervisão. A regulação financeira tem, claramente, que ser muito mais intrusiva, actuante e focada sobretudo em resultados práticos em vez de se concentrar e perder tempo com verificações burocráticas. Que essa necessidade esteja identificada parece claro. Que haja real capacidade para a pôr em prática rapidamente e com efeitos visíveis já parece mais duvidoso. As instituições e as suas culturas são muito mais lentas a mover-se do que a realidade, que é cada vez mais rápida.

Mas há, sobretudo, um trabalho a ser feito pelas próprias entidades financeiras nas suas regras de gestão, em defesa da sua sustentabilidade e equilíbrio financeiro a prazo.

O que se passou durante os loucos anos da corrida ao endividamento foi um sistema de incentivos perversos que conduziu aos exageros que conhecemos.

Já para não falar do regabofe das bonificações de juros do crédito jovem à habitação que durante mais de uma década vigorou em Portugal – que resultou em centenas de milhares de contratos de crédito à habitação em parte pagos com dinheiro dos contribuintes -, os próprios bancos têm que alterar os seus sistemas de governação, objectivos, avaliação e prémio do mérito.

Quando o foco comercial de uma instituição está no volume de negócio e no número de contratos ou de produtos financeiros que são vendidos, estamos a meio caminho para a asneira. Ainda que as áreas comercial e de avaliação de risco estejam higienicamente separadas, a pressão para a produção pela produção, sem cuidar da rentabilidade a prazo, só levará a maus resultados. Não raramente, o vendedor, o gestor de conta ou gerente de balcão estão mais do lado do cliente a tentar ultrapassar as regras do controlo de crédito do que a pensar no risco concreto daquele contrato.
Pudera. Os seus objectivos individuais estão desenhados pela gestão para que vendam, concedam créditos, distribuam cartões de crédito, façam contratos de leasing e de Aluguer Longa-Duração ou emprestem também dinheiro para as férias. O prémio trimestral ou anual que vão receber como complemento aos ordenados depende disso. As promoções e aumentos salariais são feitos com base nestas “performances”. Os rankings internos são feitos assim. O “empregado do mês” nunca será o que rejeitou 30 contratos de crédito que eram de elevado risco mas sim o que assinou esses 30 contratos.

Do mesmo modo, os objectivos dos gestores de topo são, com frequência, conflituantes com os interesses de médio e longo prazo dos accionistas. Os primeiros trabalham de olhos postos nos resultados trimestrais, nas notas dos analistas de mercados e na performance de curto prazo. Os
últimos preferem que não se sacrifique o futuro espremendo-o todo para o presente, como na história da galinha dos ovos de ouro.
Por regra, neste sector as asneiras demoram sempre algum tempo a revelar-se e, quando isso acontece, já é tarde. Mais: aquilo que hoje parecem sucessos são amanhã vistos como asneiras.

Talvez os accionistas estejam, na sua maioria, demasiado distanciados destas realidades do dia a dia, apesar da sua importância para o valor dos seus investimentos. Ou talvez pensem que o risco, apesar de tudo, vai compensando.

Mesmo com as novas regras que privilegiam as perdas para accionistas e grandes clientes em caso de acidente, os dinheiros dos contribuintes não estão seguros se serem chamados a pagar estes excessos.

Talvez então esteja na hora das entidades de supervisão criarem incentivos correctos para que accionistas e gestores pensem melhor na forma como continuam a gerir os seus bancos.

diaso.

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