O confisco institucionalizado

A moda das contribuições extraordinárias não é nova nem vem deste Governo. Este Governo tem-se simplesmente limitado a manter a política.

Causou “frisson” o amuo do Bloco de Esquerda (BE), depois de o Governo ter dado o dito por não dito em matéria de uma suposta contribuição extraordinária sobre as empresas de energias renováveis. Desonestidade e traição foram alguns dos mimos dirigidos pela bancada bloquista à do PS. Já o PS fez de conta que não era nada consigo, fazendo aquilo que o seu líder tantas vezes faz: fechando-se em copas e mantendo-se em silêncio, porque ao silêncio não se responde. Assim vai a política indígena. Mas relativamente ao assunto concreto das contribuições extraordinárias sectoriais, há que questionar: fez bem o Governo em rechaçar a proposta do BE? Resposta: sim, fez bem. É evidente que houve um erro grave de forma – é aliás por estas e por outras, situações reiteradas por uns e por outros, que na Assembleia da República os deputados evitam a palavra “mentira” (em alternativa, os deputados habitualmente optam por uma palavra inexistente na língua portuguesa chamada “inverdade”) –, mas na substância da coisa o Governo andou bem. Porque governar não é lançar mão de contribuições extraordinárias nem andar atrás de um grupo de empresas só porque não se gosta delas.

Em jeito de introdução, devo dizer que a moda das contribuições extraordinárias não é nova nem vem deste Governo. Este Governo tem-se simplesmente limitado a manter a política. É facto que a contribuição extraordinária sobre as energias renováveis não avançou. Mas, ao invés, avançou a contribuição extraordinária sobre as empresas de dispositivos médicos, que se juntará às já existentes contribuições extraordinárias sobre a indústria farmacêutica e sobre o sector energético. Acrescem ainda as contribuições regulares sobre o sector bancário e também sobre o audiovisual. Ora, estas contribuições, porque são coercivas, não são “contribuições” no sentido cooperativo da palavra. Na verdade, a palavra certa para as definir, certamente no caso das extraordinárias, é outra: “tributos”. E estes tributos, porque são feitos à medida de alvos perfeitamente identificados e estereotipados, são mais do que meros tributos. São confisco.

As contribuições extraordinárias que hoje existem em Portugal estão concentradas em três sectores: banca, energia e saúde. Curiosamente, são três mercados de oligopólio (ou quase oligopólio) em Portugal. Para compor o ramalhete, faltaria apenas uma contribuição extraordinária sobre o sector da grande distribuição e outra sobre a construção. Os seus proponentes argumentam da seguinte forma: dado que são sectores que exibem lucros extraordinários (?) devem ser tributados extraordinariamente. Acontece que esta é precisamente a lógica do confisco. Saca-se a quem mais tem (ou a quem mais parece ter) e, na versão pós-moderna do BE, vai-se buscar a quem está a acumular capital. O problema é que a existência de lucros extraordinários é sintomática de uma situação acima de todas as outras: de falta de concorrência. E à falta de concorrência costumam estar associadas outras coisas, nomeadamente: as elevadas barreiras à entrada e/ou os preços altos. Ou seja, os lucros não são um problema em si, bem pelo contrário, mas podem ser a manifestação última do problema maior. A solução é, pois, abrir o sector à concorrência, contribuindo (agora sim a palavra justifica-se!) para aumentar a oferta e baixar os preços. Recorde-se que em concorrência perfeita o lucro normal é zero.
A institucionalização do confisco é um sério risco para a nossa economia. Primeiro, porque se perde o critério e a estabilidade. O que é um lucro extraordinário? São milhares, milhões ou milhares de milhões? São valores absolutos definidos ao gosto do freguês ou são valores relativos sobre os capitais investidos? Um lucro de milhares sobre capitais investidos de baixo valor é extraordinário? Segundo, o confisco é errado porque já existe um imposto sobre os lucros das empresas. Chama-se IRC, aplica-se a todas as empresas e, enterrada que está a reforma de há uns anos, a taxa marginal máxima de IRC (incluindo derramas) será em 2018 de 31,5%, uma das mais altas de toda a Europa. Terceiro, ao enveredar-se pelo confisco, porque é fácil e dá uns milhões, exoneram-se os reguladores sectoriais dos seus deveres: cuidar que os lucros dos regulados não resultam de posições abusivamente dominantes nem de práticas anti concorrenciais. Mais ainda: cuidar que da relação entre reguladores e regulados não resultam as barreiras à entrada, frequentemente apadrinhadas entre uns e outros, que conduzem à criação de oligopólios. Este último ponto é, aliás, um ponto que não pode ser descurado, precisamente porque é a partir da existência de contratos blindados, alegadamente irreversíveis, que alguns em Portugal justificam a sua pulsão confiscatória.

No caso em apreço neste artigo – a contribuição extraordinária sobre energias renováveis –, o que o BE queria era ir buscar um total de 250 milhões de euros preferencialmente a duas ou três grandes empresas em Portugal. A pulsão confiscatória era tal que se criaria o absurdo de, por um lado, querer tributar desta forma – com uma taxa de 30% (?!) – os resultados de um punhado de empresas e, por outro lado, dar-se o caso de o BE até ser dos partidos ecologicamente mais conscientes. Ou seja, o BE queria sol na eira e chuva no nabal. É um pouco como sucede quando os mesmos se queixam de que os salários líquidos em Portugal são parcos, mas em que ao mesmo tempo vão promovendo o aumento do peso do Estado e dos impostos por este cobrados. Não bate certo. Mas, sem prejuízo da crítica, também eu sou sensível a contratos que o Estado faz mal feitos. Também eu sou sensível a políticas de subsidiação que resultam, não no interesse comum (até porque isso dificilmente existe), mas sim num Estado capturado por interesses privados. Note-se que o problema não está nos privados; está sim nos interesses. Por esta razão, quanto menor for o peso do Estado na economia, menor será a probabilidade de captura. E na ausência de captura, ausente estará também o argumento que agora parece querer justificar o confisco.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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