Mitologia económica portuguesa

Este ciclo de crescimento económico está a desmontar alguns dos mitos que ouvimos abundantemente na última década e que contribuíram para a nossa desgraça. Ainda bem.

A economia portuguesa já conta com 15 trimestres de crescimento económico consecutivo. Desde que saiu do vermelho, no último trimestre de 2013, o produto do país acelerou e desacelerou várias vezes mas desde o final do ano passado regista a melhor série de crescimento desde 2001.

Não porque o crescimento dos últimos três trimestres tenha atingido níveis estratosféricos ou apenas invulgares. A média de 2,5% registada desde Outubro do ano passado é relativamente banal no plano europeu e medíocre para as nossas reais necessidades. Mas depois do prolongado jejum de quase duas décadas, com três recessões e um resgate pelo meio, já nos sentimos saciados com uma refeição mediana.

São boas notícias, que se tornam ainda melhores quando olhamos para o perfil deste ciclo de crescimento. Não só este se apresenta saudável – contra os planos iniciais e a política económica defendida pelo governo, mas isso agora não vem ao caso – como desmonta alguns dos mitos que ouvimos abundantemente na última década. Vamos ver quais são esses mitos.

1 – Com esta política europeia não haverá crescimento económico

Quantas vezes não ouvimos esta frase, em diferentes versões mas sempre com o mesmo sentido? A culpa seria do Tratado Orçamental, dos “fanáticos da austeridade”, da “obsessão com o défice” ou da “penalização moral dos países do Sul”. Os tiranos tinham até rostos e nomes: Angela Merkel, Wolfgang Schauble e Jeroen Dijsselbloem. Ora, não só não se registaram mudanças nas políticas propostas por Bruxelas, como os tratados continuam em vigor e todos estes responsáveis se mantêm nas suas funções – ao que parece pelas sondagens, Merkel vai até renovar o seu mandato em Outubro. Lembram-se quando Dijsselbloem era um alvo político a abater, a sua liderança do Eurogrupo estava por dias e devia ser demitido sumariamente? Foi há poucos meses. O facto é que, entretanto, deixámos de falar dele e dos seus colegas e de os apontar como os responsáveis por aquilo que não nos corria bem. Se nada mudou no plano europeu que justifique esta alteração de atitude de algumas das nossas elites políticas e económicas, o que mudou então? O que se passou é que o nosso crescimento económico apareceu, consolidou-se e é apresentado hoje como uma vitória pelos mesmos que antes diziam que ele era impossível nesta Europa. Ou seja, pelo menos para já deixámos de precisar de alibis externos para as nossas próprias insuficiências, as más políticas e os problemas estruturais que acumulámos. Estamos, afinal, com o melhor crescimento do século depois de uma longa e dura caminhada de redução do défice orçamental que o trouxe para o valor mais baixo da democracia e no mesmo quadro de políticas europeias. O que nos leva ao segundo mito.

2 – A obsessão com o défice mata a economia

Depois do tratamento de choque que o limiar da bancarrota tornou inevitável, logo se começaram a ver “folgas” e se começou a pensar que o melhor era manter o défice orçamental ali pelos 3% sem esforços adicionais porque só assim se criaria espaço para dinamizar o crescimento económico. Cumpriam-se assim os mínimos de Bruxelas – como se ter contas públicas equilibradas fosse um favor que fazemos aos chatos políticos europeus e não a nós próprios – e pegavam-se nuns milhões de diferencial para “despejar” na economia, para ver se ela animava. Não foi bem assim, antes pelo contrário, e ainda bem. O “défice mais baixo da democracia” não é, afinal, um travão ao “crescimento mais alto da década”. A ideia de que a economia é comandada pelo Estado e por políticas económicas definidas por um punhado de economistas com uma folha de Excel já conheceu melhores dias. No fim do dia, a confiança que o equilíbrio orçamental transmite aos agentes económicos, aos nossos parceiros comerciais e aos nossos credores tem efeitos positivos mais prolongados do que os milhões que se atiram, tantas vezes sem critério, para a economia.

3 – O investimento público é fundamental

O investimento público é fundamental, de facto, para muitas coisas. Mas uma dessas funções cruciais não é, certamente, o efeito aritmético imediato que tem no cálculo do PIB. Porque, sabemos por experiência própria, as décimas a mais que conseguimos nas estatísticas do crescimento económico num ou noutro ano vamos pagá-las mais tarde com juros pesados se esses investimentos não forem racionais e necessários, com retorno económico e social comprovado. Investir apenas por investir é como manter a lareira acesa com notas de euros: dá algum calor no momento mas, a prazo, voltamos a ter frio e entretanto ficámos mais pobres. Depois de uma série de anos de contenção no investimento público tivemos, em 2016, o valor mais baixo em muitos anos – porque o Governo, bem, optou por dar prioridade à redução do défice. E cá estamos com a economia a crescer sem precisar, para isso, do efeito provocado na actividade pela construção de mais uma auto-estrada, um estádio de futebol, um conjunto de barragens eléctricas ou outras coisas de mais do que duvidosa necessidade.

4 – Isto só lá vai com o estímulo do consumo

A destruição deste mito é, talvez, a mais importante de todas. Eu acredito que a economia portuguesa saiu estruturalmente mais forte da dieta forçada imposta pelo resgate e pela consequente recessão.

(Uma nota lateral: os profissionais da indignação mais apressados em tirar conclusões e mais impressionáveis com estas coisas não concluam com isto que estou a dizer que o resgate não provocou danos severos em muitas, demasiadas, pessoas e famílias. Provocou. Por isso é que é fundamental termos políticas sólidas que evitem novo resgate para evitar repetidas e cíclicas doses de sofrimento. Façam o favor de ler a palavra “estrutural” e de perceber que com ela quero dizer que a economia tem hoje equilíbrios e dinâmicas melhores do que tinha há dez anos. Tal como um paciente está em melhor condição e com melhores perspectivas de vida logo após uma cirurgia complicada e difícil que o fragiliza, enfraquece e obriga a uma recuperação mas que foi fundamental para que sobrevivesse).

Porquê? Porque a redução abrupta do mercado interno, no início da década, obrigou muitas empresas a encontrar alternativas para vender os seus produtos e a ir à procura de clientes nos mercados externos. Saíram da “zona de conforto” que o consumo interno, muitas vezes alimentado por crédito, lhes dava. E, pasme-se, não é que muitas delas até conseguiram mesmo fazer negócios lá fora que estão a consolidar-se? Outras empresas, mais bem relacionadas com o poder, perceberam que a perspectiva de continuarem a viver de rendas, sobretudo pagas pelos contribuintes, estava a acabar-se. E também essas tiveram que fazer-se à vida.

O sector do turismo, por seu lado, pôde sair do “armário” depois das reformas legislativas e de políticas feitas com a desburocratização, desregulação e autorização de algumas actividades, abertura do país a companhias aéreas “low cost” e mudança da promoção externa do país.

E o resultado está à vista. O primeiro motor deste ciclo de crescimento foram as exportações (que, estatisticamente, incluem o turismo) e o segundo está a ser o investimento. E isso é positivo, ainda que neste último caso possa haver algum efeito do eleitoralismo autárquico.
Seja como for, não são os estímulos dados aos cidadãos para que estes consumam que estão a fazer a diferença neste ciclo de crescimento económico. Até porque uma boa parte do que compramos é importado. Por outro lado, algum consumo é pago com o recurso ao crédito e uma das últimas coisas de que necessitamos é de desviar os recursos financeiros da banca para estas finalidades.

Portanto, já que chegámos até aqui e aparentemente está muita gente satisfeita com o resultado, podíamos construir uma espécie de consenso nacional para o futuro: para termos crescimento económico não precisamos de políticas que geram desequilíbrios nem de odiar governantes eleitos noutros países. Basta fazermos o nosso trabalho bem feito, que é uma ideia a que temos tido dificuldade em habituar-nos. Mesmo que o crescimento venha a desacelerar, temos que resistir ao regresso a estes vícios mitológicos.

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