Matou a família e foi ao cinema

Se as audiências salivam por sangue, não vão atrás delas, dêem-lhes antes um torrão de açúcar. É o melhor serviço público que lhes podem prestar.

São cada vez mais as pessoas a dizer que, durante os telejornais e blocos informativos, têm de ir à cozinha buscar um pano para limpar o sangue que corre das televisões. A agenda do crime entrou como a peste bubónica nos nossos canais e em termos de credibilidade está a arrasá-los como a epidemia da Idade Média.

Não sou saudosista de nada, mas tenho boas memórias. Ainda há uma semana estive nos 60 anos da RTP e vi num vídeo que faz a promoção do seu aniversário, Sousa Veloso, Vasco Granja, Jorge Alves, Júlio Isidro, José Hermano Saraiva, Vitorino Nemésio e na informação tantos que já partiram e outros que, felizmente, ainda estão entre nós, de um tempo em que se reportava o que era importante e no entretenimento havia critérios de qualidade, de cultura, de educação e preocupação cívica.

A minha geração e as mais velhas cresceram com uma televisão que tinha muitas limitações, também restrições e às vezes agenda política, mas que tinha qualidade. Só quando havia crimes graves, por exemplo lembro-me do massacre do “carniceiro” Victor Jorge, da Marinha Grande, é que os media davam ampla cobertura a algo fora do comum.

Hoje, são horas e horas de crime, programas dedicados a essa temática, histórias de faca e alguidar, directos com uma série de jornalistas que, coitados, vão enchendo chouriços como podem porque às vezes há pouco para dizer. Dir-me-ão que as audiências é que mandam e eu até posso compreender a lógica dos accionistas, mas não compreendo o interesse público.

É a catástrofe, os acidentes mortais, o terrorismo que destrói, as tragédias humanas que chamam a atenção e vendem. As boas notícias valem pouco e não mexem com as dinâmicas do click que depois origina partilhas nas redes sociais e também receitas publicitárias. Tudo isso é verdade porque vivemos numa sociedade que se alimenta do “voyeurismo” e está alheada do que verdadeiramente interessa por uma morbidez latente.

Há poucos dias o treinador Manuel José deu uma entrevista ao jornal A Bola onde dizia algo importante: «a independência moral é mais importante que a independência económica». Os critérios comerciais e financeiros não valem tudo e, felizmente, somos um País pequeno mas onde muita gente tem valor, onde há artistas para promover, cientistas que inventam, criadores dinâmicos, empresas inovadoras e trabalhos de responsabilidade social que merecem ser conhecidos e reconhecidos.

O sangue não deve ser o critério norteador das agendas mediáticas apenas porque nos dão audiências. Há muitos temas relevantes que têm de ser esmiuçados pelos meritórios critérios jornalísticos e as boas notícias têm de ser moeda corrente e passar a ser títulos de padrão-ouro nas nossas televisões. E aqui sim, a boa moeda tem de substituir a má moeda.

O título deste meu artigo é de um filme de 1969, de um dos padroeiros do cinema marginal brasileiro, Julio Bressane: «Matou a família e foi ao cinema». É que corremos o risco de que a banalização do crime nas televisões se torne, por osmose, a banalização do mal nas nossas sociedades, a acendalha de sentimentos abjectos e a fluidez de comportamentos repulsivos que não devem ser divulgados nem promovidos. Se as audiências salivam por sangue, não vão atrás delas, dêem-lhes antes um torrão de açúcar. É o melhor serviço público que lhes podem prestar.

Nota: Por decisão pessoal, o autor não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Matou a família e foi ao cinema

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião