Incêndios e velhos guerreiros

José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, o discurso do Presidente da República sobre a resposta do governo aos incêndios. E também sobre o que deve ser, afinal, o PSD.

Hoje é noite de falar do PSD, mas, antes um aperitivo…

Parabéns a Marcelo Rebelo de Sousa

Tenho criticado, talvez mais do que ninguém, o Presidente da República pelos erros que já cometeu sem necessidade – não gosto de unanimismos – e quando o elogio, não é a voz de alguém que rasteja, quer batatinhas, ou está ao serviço de uma ambição ou uma suserania. Mas, aqui, o unanimismo no elogio (exceto, claro, o PS e de sectores ativos do BE e PCP) é mais do que devido.

Esta semana, passou de Rei a Presidente da República, sem perder o toque régio dos reis taumaturgos (que curavam com as sagradas mãos ao tocarem os doentes), um discurso notável, que ficará para a História da 3ª República e para os estudiosos da relação entre os Poderes da República. Se há um discurso que merece 20 valores é este. Porquê?

  1. Pela sua empatia genuína com o sofrimento, que é algo que o define intrinsecamente, e pelo choque que sentiu.
  2. Por despeito ético pelo comportamento do primeiro-ministro e de alguns apaniguados.
  3. Por instinto de auto-defesa (depois do excesso de proteção do Governo em Pedrógão Grande e em Tancos, que aqui critiquei.

Nunca vi um Presidente da República humilhar tão fortemente um primeiro-ministro e, por menos do que isso, já se fizeram golpes de Estado. António Costa não teve alternativa: calou, engoliu, cedeu, negou-se, traiu-se, deu o dito por não dito. Mas António Costa nunca mais vai perdoar – pode demorar anos, mas um dia vai estar ao virar da esquina com uma faca afiada.

Por isso, vai ser divertido ver a relação de ambos. Apesar de nada ter mudado na essência – ambos precisam do e querem o sucesso do outro –, este conflito é pois uma estupidez que só a tradicional arrogância de António Costa, que o sucesso reforçou, pode explicar.

Mas a Direita não devia estar a rir. António Costa vai ficar mais dependente da geringonça, vai fazer tudo o que for preciso para sobreviver, virão mais efeitos nefastos de um eleitoralismo que se vai acentuar (já presente neste Orçamento, que falaremos para a semana).

Uma última reflexão e algumas notas, antes de mudar de tema, sobre as reformas do sábado passado anunciadas pelo Governo:

  • Qual a razão para António Costa quando foi Ministro da Administração ter recusado o que agora propõe?
  • Qual a razão de só ocorrerem reformas após uma tragédia?
  • Qual a razão para se não optar por criar um corpo de bombeiros florestais nacional e profissional em vez de criar micro grupos dentro dos corpos de bombeiros voluntários?
  • Qual a razão para se achar que um aumento de centenas de milhões de euros de despesa (que é essencial) não tem de ser acompanhado por idêntico valor de redução de outras despesas?

Sei as respostas, mas elas ficam para uma das próximas semanas. Apenas afirmo que não tocaram em aspetos essenciais (leiam os especialistas ouvidos pelo Observador). ‘Soube-me a pouco’.

Vamos, então, ao PSD

Desse lado, as notícias também não são boas, diga-se a abrir. A começar pela renovação feita com políticos mais velhos do que Passos Coelho – nada contra os mais velhos, não sou masoquista –, mas que ideia, que imagem, que mensagem, Rui Rio e Santana Lopes trazem?

Que ideias? A estúpida discussão sobre se o PSD tem de ser ou não social-democrata, e se não pode ou deve ser de direita… É sabido que se a ignorância e a má fé pagassem impostos, não tinha sido necessária a troika.

Jacques Julliard, um verdadeiro social-democrata e homem de esquerda no L’Obs da passada semana: não surge nas últimas décadas um pensador social-democrata original, só faltou passar a certidão de óbito…

O PSD é social-democrata? As coisas são o que são, nem o PS já é verdadeiramente bem social-democrata. Como ser alternativa ao PS disputando o mesmo espaço? Como ser alternativa desprezando o seu eleitorado que, manifestamente, não é nem nunca foi social-democrata?

O PSD não é de direita? As coisas continuam a ser o que são: de que se fala quando se fala de Direita?

  • Politicamente: é o que se confronta à Esquerda. O PSD é de direita.
  • Sociologicamente: é onde se situa o eleitorado mais conservador, liberal, com tendências autoritárias, católico, contrário às causas de rutura social (lembro, no tempo de Mota Pinto, o sururu que deu a inserção no Programa do PSD da palavra “direito à diferença”). O PSD é e sempre foi o partido que agregou essas famílias culturais, de direita.
  • Estrategicamente: está integrado na família do Partido Popular Europeu e nem sequer na Aliança dos Liberais e Democratas, que, sem revolta interna nenhuma, abandonou quando Marcelo Rebelo de Sousa era líder. O PSD é de direita.

E qual é a perceção dos portugueses sobre o PSD? Um estudo de Ana Belchior revelou que, entre 1985 e 2012, numa escala de 0 a 10 (5 é mediana e 10 é a extrema direita), o PSD passou de pouco menos de 7 para pouco menos de 8. Ou seja, claramente à direita, Rui Rio queria que os seus eleitores fossem entre 4 e 6, e isto já no pré-cavaquismo.

Mas o problema é o que PS está, desde 1985, entre 5 e 4,5 e o próprio CDS, nesse período, passou de pouco mais de 8 para pouco mais de 7, ou seja ligeiramente mais ao centro que o PSD…

O que disse Pedro Magalhães em relação a um período mais curto? “A percepção do posicionamento do PSD mudou de 2005 para 2009, para a direita, tornando-o indistinguível do CDS-PP. Sem surpresas, também, tendo em conta o discurso de Manuela Ferreira Leite, seja na economia seja nos costumes”.

E ideologicamente, o que é o PSD? Não é rigorosamente nada, como é evidente. Não pode dizer que é coisa alguma com receio de perder eleitores. E o que deveria ser o PSD? Escrevi muito sobre isso no século passado, a começar por um livro sobre o pensamento político de Sá Carneiro há mais de 35 anos (e que reeditei em 2010). O PSD deve ser o partido do “liberalismo avançado”, hoje isso não significa o mesmo que em 1980, mas na essência mantém-se: liberdade política, económica, social e cultural (costumes), defesa da sociedade civil, redução muito significativa do peso do Estado e dos impostos, desburocratização, Estado social focado nos verdadeiramente mais desfavorecidos, aposta da Educação com ascensor social. Nada disto está no ADN do PSD há 30 anos. Ideologicamente não está nada.

É assim, e não adianta chamar social-democrata a Rio e a quem o apoia (para criticar ou para elogiar), como não adianta dizer que Santana Lopes é de direita (para elogiar ou para criticar). O resultado desta persistência nos equívocos é a fulanização caciquista do debate político. Nesse combate reconheço sem dificuldade que Rui Rio, com todos os seus defeitos, é menos mau que Santana Lopes. E eu não gosto nada de Rui Rio. Mas Santana é a expressão do cacharolete ideológico confuso dos militantes, e muito provavelmente vai ganhar. Começou muito bem, dizendo tudo o que os militantes gostam de ouvir.

Assim, António Costa continua com sorte, e se a alternativa é Santana Lopes como primeiro-ministro, Deus queira que continue a ter… e Marcelo, não tenho dúvidas, só pode pensar o mesmo.

O cantinho das tontices

A Ordem dos Engenheiros enviou há dias um esclarecimento a dezenas de milhares de associados, segundo o qual José Sócrates não é engenheiro. Os problemas com o seu curso na Universidade Independente viram a luz em Março de 2007 – era na altura um primeiro-ministro todo poderoso – e nunca nessa altura se ouviu a Ordem dos Engenheiros a acusá-lo de usurpar o título de engenheiro, apenas quando foi acusado pelo Ministério Público (MP) se lembraram disso.

Um dos lados piores da alma portuguesa é tremer de coragem frente aos poderosos e calcar com muita força os que estão caídos. Lamento que uma instituição como a Ordem dos Engenheiros tenha ganho o privilégio de ser condecorada como a entidade mais tonta da semana.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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