Ele é economista, não é?

A entrevista de Adolfo Mesquita Nunes tem muito mais do que a afirmação da sua homossexualidade. Um amigo perguntava-me “Ele é economista, não é?”. Eu sabia-o de Direito, mas percebi ali um elogio.

Comecemos por constatar o óbvio. As frases a verde que estão aqui em cima, o chamado lead, não são uma escolha minha. São uma decisão de uma equipa editorial, que tem muito mais sensibilidade que eu para perceber o que é que capta a atenção dos leitores. Porque – e vamos continuar a referir o que é evidente – um jornal é um negócio e, como qualquer negócio, precisa de clientes. O estatuto de quarto poder dá à comunicação social obrigações especiais, mas não belisca o propósito de maximizar a audiência, só lhe impõe restrições aos meios que usa para atingir esse fim.

Vem isto a propósito da recente entrevista (de vida) que Adolfo Mesquita Nunes deu. O Expresso, que a publicou, escolheu fazer capa com uma citação onde o entrevistado afirma a sua homossexualidade. Eu, que não discrimino orientações sexuais e investigo em Economia do Turismo, teria preferido destaque a “muito do discurso antiturismo é um discurso ideológico anticapitalista, anti-iniciativa, antiempresas, antilucro”, claro. Mas estou ciente de que há bastante mais homofóbicos que “turismofóbicos”, até porque homossexuais não são uma realidade regional, ao contrário de turistas, que estão concentrados em Lisboa, Algarve e Porto.

E a estratégia do Expresso revelou-se acertada: a sua capa encheu as redes sociais e foi o grande tema de discussão no fim-de-semana (para quem ainda não percebeu: isto faz parte do modo como hoje jornais e televisões medem o seu impacto). Provavelmente, uma frase como “A mesa da minha família ensinou-me que se pode amar quem tem um modelo de vida e de sociedade completamente distinto do nosso”, que está em destaque no interior da revista e que eu considero conter uma ideia bem mais importante, não o teria conseguido. Não teria gerado centenas de “posts facebookianos” a perguntar “qual é a relevância disto?!”, o que é um paradoxo, porque ao publicar a pergunta está-se-lhe a responder.

Um outro paradoxo é o de se afirmar que a orientação sexual é matéria do foro privado e, depois, condenar quem fala da própria. Eu sei que há grande confusão entre esta coisa de direitos e obrigações, mas vamos lá ver se nos entendemos. Os meus direitos geram obrigações para terceiros. O meu direito à privacidade condiciona ao meu assentimento o acesso que terceiros possam ter aos meus assuntos privados, não me obriga, a mim, a manter reserva sobre eles.

Aliás, a luta de Ana Paula Vitorino contra o cancro e o gosto de Jorge Sampaio por estar vivo fizeram capas do Expresso (isto para nos cingirmos a entrevistas de políticos a essa publicação e não termos de recuar muito no tempo) e não houve qualquer celeuma. Aparentemente, saúde e atitude perante a vida não têm de ser escondidos. Só a orientação sexual – quando é para pessoas do mesmo sexo, entenda-se – deve ser votada ao silêncio. Se se fala dela, logo há um coro de recriminação. E, aqui, o paradoxo roçou, em muitos casos, a hipocrisia. Porque muitas das pessoas que invocaram a privacidade para sugerir a discrição são as mesmas que se “esquecem” que é vida privada quando se trata de legislar, de discriminar, de vilipendiar.

Foi assim com Adolfo Mesquita Nunes, havia sido assim há uns meses com Graça Fonseca. Prova que o tema – que, de facto, respeita à intimidade de cada um – está longe de ser encarado com a normalidade que se devota a confissões sobre irmãos, filhos e amigos, as leituras preferidas, a infância ou a relação com Deus, tudo matérias do foro privado, que fizeram títulos de entrevistas sem gerar qualquer controvérsia. Porque, e vamos lá ver se nos entendemos novamente, uma coisa é alguém não encontrar nenhum problema na homossexualidade, outra coisa é achar que a sociedade também pensa assim. Não pensa.

É por ainda existir muito preconceito (não obstante os avanços legislativos) que há quem advogue que os homossexuais têm até o dever de se assumir enquanto tal (da mesma forma que reclamam a denúncia de quem sofreu assédio sexual). Eu não exijo vocação para mártir a ninguém, mas admiro muito quem tem a coragem de fazê-lo. Uma coragem de que Adolfo Mesquita Nunes diz, na entrevista, não ter precisado, graças a gente que, antes dele, trilhou esse caminho por uma causa. Acho que teve de a ter. Pela sociedade em que vivemos, pelo partido a que ele vice-preside.

A esse respeito, uma outra linha de condenação da entrevista defendeu que o líder de um partido tendencialmente conservador devia abster-se de revelações tão modernas. Faz sentido. Num país em que o regimento da Assembleia da República prevê que os deputados ausentes votam de acordo com a sua bancada, é normal que se considere que a pertença a um partido determina o outsourcing cerebral e vocal. Principalmente desde que as últimas legislativas transformaram todo e qualquer tema, incluindo os que deviam ser apenas de Humanidade, sem ideologia, em matéria de arremesso na guerra de trincheiras entre “PàF” e “Geringonça”. Percebo que Adolfo Mesquita Nunes tenha deixado uma certa Direita numa situação complicada. E que o preferissem dentro do armário.

Claro que me parece razoável que se discuta se faz sentido a sua militância no CDS/PP. Afinal, os partidos, tal como as religiões, constroem-se sobre dogmas e é legítimo o debate sobre o grau de flexibilidade que se deve admitir na adesão aos mesmos. Da minha parte, sem me interessarem filiações, identifico-me muito com as ideias liberais de Adolfo Mesquita Nunes. E admiro a sua inteligência. Há uns tempos, um amigo perguntava-me “Ele é economista, não é?”. Eu sabia-o de Direito, mas encontrei ali uma forma de elogiá-lo: parece um economista!

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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