“Desta vez é a sério” e outras mentiras dos políticos

Talvez não tenhamos dado conta, mas entre os anos 2000 e 2016 os incêndios florestais já tinham matado em Portugal mais de 120 pessoas sem que nada tivesse acontecido.

No momento em que escrevo este texto o Governo está reunido num Conselho de Ministros extraordinário para aprovar um pacote — mais um — de leis e de medidas para a floresta.

É típico em Portugal: perante um problema, aprovar uma lei; perante um grande problema, aprovar uma resma de leis.

Por que não aposto nem um cêntimo na eficácia destas coisas? Porque esta é a enésima vez que isto acontece. De uma forma geral, os políticos — deste ou de outros governos — foram cavando a sepultura da sua própria credibilidade com este folclore para o povo ver.

Há dois meses, este mesmo governo, este mesmo ministro da Agricultura, tinha anunciado “a maior revolução que a floresta conheceu desde os tempos de D. Dinis”. Então e dois meses depois já precisamos de outra? Não bastará aplicar então essa fantástica e profunda reforma que até foi publicada num Diário da República pintado de verde e tudo?

Deixemo-nos de hipocrisias e de fugas em frente. Este é um dos maiores falhanços de políticas públicas da democracia, que atravessa a generalidade dos governos. A omissão do Estado é criminosa. Pelas vidas que se perderam, sim, mas também pelos danos económicos e sociais ao longo de décadas. Num país decente o Estado e alguns dos seus agentes seriam responsabilizados em tribunal.

Talvez não tenhamos dado conta, mas entre os anos 2000 e 2016 os incêndios florestais mataram em Portugal mais de 120 pessoas. Mais do que as vítimas dos grandes incêndios deste ano. Mas fomos convivendo com essas mais pequenas tragédias e fatalidades, ano após ano, sem o sobressalto que estamos agora a ter. Isto diz muito do país que somos.

Vamos suportando o horror se este for a conta-gotas. Morre uma mão cheia de gente este ano, mais uma dezena de bombeiros no próximo ano mas nada, nunca, acontece. “Podia ter sido pior”. Pois podia. Até que um dia dia é mesmo pior. Foi agora. E o que fazer então? Mais um Conselho de Ministros extraordinário, para mostrar que se está a fazer alguma coisa. Dir-se-á que “desta vez é a sério”. Até à próxima tragédia. Não gosto particularmente de me citar. Mas também não tenho nada de novo a acrescentar ao texto que escrevi há um ano, após os grandes incêndios da Madeira. Foi publicado no dia 10 de Agosto de 2016 no Sapo, e este era o essencial:

“Em Portugal a floresta é duas vezes vítima na nossa falta de planeamento, de organização, de exigência, de execução de políticas públicas e posterior avaliação e de responsabilização: a primeira é com a quantidade de árvores abatidas para se imprimirem os ‘n’ relatórios, estudos e reflexões sobre a reforma do sector, a prevenção e combate aos fogos; e a segunda é quando tudo arde porque nada de relevante se fez.

Não há governo que não prometa uma ‘Reforma da Floresta’ e António Costa não foi excepção, como acabámos de assistir. Mas já os anteriores governantes anunciaram mudanças de fundo que ou não foram aplicadas ou estavam mal desenhadas desde o início. Foi assim em 2006 e já tinha sido assim em 2003.

Já chamámos especialistas norte-americanos e chilenos para nos ajudarem a combater os fogos.

Na década passada, a chamada sociedade civil deu um contributo para o assunto através da Cotec. Foi feito um estudo aprofundado financiado por mais de uma dezena de empresas sobre a prevenção e combate aos fogos florestais, a partir da experiência das melhores práticas internacionais.

O que se desconhece é o resultado de todas as reformas, contributos e iniciativas. Não sabemos o que foi feito ou não foi e que impacto teve na floresta, na sua conservação e valorização sustentável porque em Portugal não há o bom hábito de avaliar o resultado das políticas públicas ou os danos causados pela sua ausência.

Por estes dias, dada a tragédia sobretudo na Madeira, não será o momento para grandes ou pequenas reflexões. O tempo é de controlar danos e cuidar da melhor forma de todos os afectados. Vai fazer-se o rescaldo, tudo vai acalmar e os incêndios deixam os alinhamentos dos telejornais. Daqui a algumas semanas, é muito provável que Fátima Campos Ferreira conduza mais um debate sobre o tema no Prós e Contras, quando o programa regressar em Setembro. Será mais um e é um clássico dos anos em que arde demasiada floresta. Aliás, se quisermos perceber o que não funciona no país basta revisitar a longa carreira deste programa da RTP e verificar os temas que são recorrentes sem que, discussão após discussão, se encontre alguma evolução.
O que nunca foi feito foi passar à pratica um plano com cabeça, tronco e membros, que resista às mudanças de ministro ou de governo e que, daqui a uns anos, possa ser avaliado e corrigido se necessário for.

O assunto é complexo. Tem uma enorme diversidade de partes interessadas — ‘stakeholders’, como agora se diz — que vão da família com uma pequena parcela de terreno onde construiu a sua casa até às grandes empresas de celulose. Tem um enorme impacto económico. Requer uma coordenação forte entre o Estado central e o poder local. Precisa de importantes contributos dos registos de cadastro das propriedades mas também de medidas penais para os incumpridores a vários níveis. Requer mudanças de hábitos, de educação e de espírito cívico por parte de grandes e pequenos proprietários que podem ser incentivadas com as medidas correctas.

Ou seja, o assunto precisa de todos os ingredientes em que, por regra, somos medíocres: estudo e planeamento, acção coordenada e colaboração entre várias “capelinhas”, estabilidade de políticas, avaliação e eventuais correcções.

Não estando estas coisas no nosso ADN, talvez a responsabilização dos decisores políticos pelo que não fizeram e deviam ter feito pudesse dar uma ajuda.

Daqui a algumas horas Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa aterrarão no Funchal para mostrar solidariedade e confortar as vítimas. Até à próxima tragédia, com estes ou outros actores políticos, onde os discursos se repetirão”.

Essa tragédia aconteceu este ano, os actores políticos são os mesmos e os discursos repetiram-se.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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