Ciclone das rendas

  • Luís Filipe Carvalho
  • 17 Outubro 2017

Luís Filipe Carvalho, sócio da DLA Piper ABBC analisa o mercado de arrendamento com enfoque nas recentes reformas

No século passado o mercado de arrendamento esteve, durante muitas décadas, totalmente moribundo. As cidades estavam oneradas com arrendamentos antigos, com rendas congeladas e desfasadas da realidade, a tipologia contratual forçava os proprietários a sujeitarem-se a arrendamentos tendencialmente perpétuos, não havia produto disponível para arrendar, os bancos implementaram uma política agressiva de financiamento imobiliário e a única opção passou a ser a de compra, despoletando um forte endividamento das famílias.

Os portugueses, em especial as gerações mais novas, ficavam presos à habitação que tinham, o que determinava uma grande dificuldade na mobilidade que também era um muro sobre o mercado de emprego.

A reforma do arrendamento urbano de 2006, reforçada, depois, em 2012, queimou as amarras que atrofiavam este mercado. Mesmo com a crise de 2009, estas reformas geraram uma nova dinâmica no arrendamento, que passou a ser directamente concorrencial com o mercado de compra com financiamento bancário. A reabilitação urbana passou a ser um sector vital da economia, os núcleos urbanos passaram a ter uma nova face, o país foi mudando de visual, as cidades foram aumentado o número de residentes, o número de novos negócios, de novas áreas comerciais e de escritórios, e, mais recentemente, fomos tomados pelos turistas em alojamento local.

Tudo isto só foi possível graças à demolição do conceito que vigorou durante todas aquelas décadas do século XX, com a protecção desmesurada do arrendatário vitalício a pagar rendas de valores ridículos, com senhorios atrofiados por um deplorável quadro legislativo. Durante todas essas décadas, o senhorio assegurou o cumprimento da obrigação constitucional do Estado: o direito à habitação.

A forte alavancagem do mercado imobiliário dos últimos anos, em especial do arrendamento, tem sido um importante factor de dinamização da economia. Para que isto se mantenha é absolutamente fundamental que haja estabilidade no quadro legislativo do inquilinato.

Porém, nestes últimos meses têm surgido declarações, ideias, projectos, teses políticas e diplomas legais para colocar o Estado a intervir directamente neste pujante mercado de arrendamento.

Parece que o Estado não se conforma com o sucesso de certos sectores económicos. Depois da escuridão em que o arrendamento esteve mergulhado, por sua inacção, eis que o Estado despertou para uma intervenção directa.

As Leis 42/2017 e 43/2017 foram o prenúncio do que poderá aí vir. Foram o início do caminho destas novas teses de ataque ao mercado do inquilinato, com a reimplantação da protecção ao arrendatário, nestes casos com o retardamento ou o bloqueio na aplicação das regras transitórias decorrentes da Reforma de 2006.

São vários os alvos seguintes: o alojamento local, onde há projectos lei com várias tonalidades, em que saltitam as vozes difusas que gritam o seu incómodo ao sucesso do turismo, chegando-se ao cumulo de se concluir que há turistas a mais; os benefícios fiscais aos arrendamentos habitacionais de longa duração (o regresso ao arrendamento de gerações?), quando esses benefícios deveriam ser para qualquer prazo de arrendamento habitacional, porque só assim se solidifica o mercado; e o programa de Arrendamento Acessível, em que “o objectivo é dar resposta às necessidades habitacionais das famílias que têm rendimentos que não lhes permitem suportar as rendas que o mercado do arrendamento está a praticar, mas que não são tão baixos que se possam enquadrar nos regimes de habitação social e renda apoiada”.

A criação da renda acessível é um desvirtuamento do mercado: atribuiu-se benefícios fiscais a quem coloque no mercado imóveis com rendas abaixo do preço de mercado, de molde a que o Estado deixe de ter que pagar subsídios aos inquilinos e se coloquem os senhorios a satisfazer as obrigações do Estado.

Este ziguezaguear de intervenções avulsas e profundas no mercado do arrendamento tem, desde logo, dois efeitos: gera incerteza legislativa e reintroduz nos proprietários as desconfianças do passado. O cruzamento destes dois efeitos pode redundar numa forte redução do número de imóveis para arrendar e no reposicionamento dos proprietários para a mais-valia da venda em detrimento da yield do arrendamento. Este ciclone ideológico sobre o arrendamento e sobre as rendas pode bem ser o regresso ao Século XX.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

  • Luís Filipe Carvalho

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