Barata sai cara

Algures no meridiano que apanha a facilmente pronunciável cidade de Ramanataphuram, acordei, pela segunda vez, com uma barata a fazer um show de sapateado no palco da minha cara.

É uma da manhã e agora sou eu que danço uma espécie de cha-cha-cha epilético para espantar a bicharada. O holofote do telemóvel percorre este cobertor nojento à procura das culpadas, abafa-se nos cortinados bafientos e acerta nos buracos da ventilação, traída pelo ar condicionado.

É oficial: acabou-se o sono. Estou na cama de cima de um beliche de um comboio e as baratas saíram-me caras. Ainda faltam quatro horas para chegar a Villupuram mas o nojo é o despertador mais eficaz. Estão preparados para uma crónica com remelas? Eu também não!

Quando saí de Thiruvananthapuram (eu acrescentava mais umas sílabas), às quatro da tarde, nunca imaginei que o meu sono não ia chegar a Elayirampannai, esperava roncar pelo menos até Thuvarankirichi ou, no pior dos casos, até Nattarasankothai mas na Índia, mais depressa se adormece a soletrar o nome de uma cidade do que embalada por um comboio. Na verdade, estou a ser injusta: se há coisa que funciona melhor, neste país, que os nossos intestinos, é o serviço de caminhos-de-ferro (que bela expressão esta, a de um caminho em ferro).

A crónica de hoje ia ser sobre o meu destino, a magnífica Pérola do Oriente com um nome que se podia dar a um poodle: Pondicherry. Uma (e a única) ex-colónia francesa na Índia. Sim, croissants e chamuças a viver amorosamente numa cidade à beira mar, com belas maisons coloniais e patisseries deliciosas. Mas tudo o que tenho agora à mão são umas bolachas de cardamomo e grão que foram uma péssima ideia e, provavelmente, atraíram a bicharada habituada a migalhas indianas. Além disso, fiquei no lugar ao lado da porta que dá para as casas de banho. Não, isto não é uma chanson d’amour. Até porque estes comboios são uma ex-colónia inglesa.

Bom, dizia eu que os “pouca-terra” na Índia são um case study de eficácia surpreendente. E o melhor de tudo é que não fazem ultrapassagens. Claro que às vezes se atrasam vinte horas (a pontualidade fugiu com os britânicos) mas conseguem organizar um bilião de pessoas como eu nunca vi.

Para percebermos a mecânica da coisa só nos temos que lembrar do sistema de castas. Aqui chamam-se classes e o Karma é consoante. Vishnu salva mais uma vez a humanidade sob a forma de uma aplicação de telemóvel onde se podem comprar bilhetes, consultar atrasos e até encomendar comida. Além de se poder comprar uma passagem, aqui compra-se uma experiência de vida.

Nas classes com ar condicionado, o viajante pode escolher se quer dormir com três ou sete pessoas. Se prefere a privacidade de uma porta, o velho glamour de uma cortina ou a liberdade do ar entre si e o ressonar dos companheiros. Se o viajante preferir a suave tepidez de uma ventoinha vintage, pode dormir numa classe ainda mais barata. E, se almejar pelo maravilhoso e perfumado ar noturno, então não tem de pagar mesmo quase nada. Para ter a verdadeira experiência, proponho a classe mais interessante de todas, onde se pode dormir ao colo de umas vinte famílias locais, sendo que a única fonte de ar se chama bafo, e o preço é literalmente o mesmo que uma ida à casa de banho. Aí sim, entre o chulé e o suor, vivem-se histórias que dão crónicas verdadeiramente épicas.

Infelizmente, do alto da minha segunda classe, fresca e solitária, só tenho insetos rastejantes em overbooking. Com estas mordomias nunca serei grande escritora. Mas olhem, que se lixe o Nobel, na próxima viagem só quero andar de avião. Até lá, lençóis franceses, s’il vous plait, que tenho uma noite para pôr em dia!

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