A UTAO, o CFP e a transparência das contas públicas

A transparência orçamental consiste em disponibilizar ao público em geral, com acesso fácil, a informação fiável, completa, compreensível e comparável internacionalmente.

Na semana passada, o Ricardo Arroja, aqui no ECO, abordou este tema com um excelente artigo que recomendo vivamente. Mas o tema é bastante relevante, e sem repetir o que o Ricardo já escreveu, creio que há espaço para mais reflexão sobre o mesmo.

Desde 2007 que o Parlamento dispõe de uma unidade técnica em matéria orçamental, a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental). Apesar de ser uma recomendação de boas práticas por parte de várias entidades internacionais como a OCDE e o FMI, Portugal foi dos últimos países a criar uma unidade deste género. Mas não se julgue que o processo foi fácil. Quem ler os relatórios da UTAO do período 2007-2009 verá que o acesso aos dados foi limitado e que muita informação necessária não foi disponibilizada.

Quando ingressei na UTAO, no início de 2010, as coisas tinham melhorado um pouco. Pouco tempo depois da minha entrada a equipa foi alargada (de 3 para 5 membros) e o acesso à informação foi melhorado. Contudo, ainda existiam muitas limitações. Só mais tarde, em 2012, já depois da minha saída para o Ph.D, a equipa ganhou mais dimensão (8 elementos) e um acesso muito amplo à informação. A UTAO hoje já não trabalha apenas com os dados que são publicados, tendo acesso a informação mais restrita.

Também em 2012 foi criado o Conselho de Finanças Públicas (CFP), (o CFP passou a constar da Lei de Enquadramento Orçamental na sua 5ª revisão, em 2011). A sua missão é proceder a uma avaliação independente sobre a coerência e o cumprimento dos objetivos definidos e a sustentabilidade das finanças públicas, promovendo a sua transparência.

É verdade que passámos em poucos anos de ausência de entidades técnicas de acompanhamento e avaliação das contas públicas para duas entidades. Mas elas têm natureza diferente. A UTAO visa apoiar o trabalho dos deputados (e se eles precisam…). O CFP insere-se não apenas nas melhores práticas, mas também numa imposição Europeia. Com a assinatura do “two-pack”, o regulamento 473/2013 impõe que cada país tenha um organismo independente desta natureza.

O CFP tem, assim, a função de fiscalizar o cumprimento das regras orçamentais, acompanhar eventuais mecanismos de correção de défices excessivos, avaliar se a correção orçamental está a decorrer de acordo com as regras Europeias e o plano aprovado entre o governo e Bruxelas, apoiando a credibilidade e a transparência do mecanismo de correção.

Além disso, avalia as condições que permitem um desvio temporário do objetivo orçamental de médio prazo ou da trajetória de ajustamento a esse objetivo desde que tal desvio não ponha em causa a sustentabilidade orçamental a médio prazo. Também tem a responsabilidade de emitir um parecer sobre as previsões macroeconómicas do OE e do Programa de Estabilidade.

No entanto, não devemos esperar que o CFP recomende ou aplique medidas de correção dos défices, mas tão-somente a identificação do problema. O objetivo do CFP deverá ser o de sinalizar os desvios e derrapagens, ainda no decurso da execução orçamental, procurando assim inverter o caminho e alcançar os objetivos.

A correção de problemas orçamentais é sempre competência dos atores políticos, seguindo as suas opções políticas, dentro do quadro técnico. É ao poder político que assiste a legitimidade democrática de fazer escolhas. O que se exige é que esse processo de tomada de decisão seja transparente.

Podemos definir que transparência orçamental consiste em disponibilizar (com acesso fácil) ao público em geral a informação (fiável, completa, atualizada, compreensível e comparável internacionalmente) respeitante à estrutura e funções do Estado, às intenções da política orçamental, às contas públicas e às projeções. Isso permite avaliar com precisão a posição financeira do Estado, bem como os verdadeiros custos e benefícios das atividades do setor público, incluindo as suas consequências económicas e sociais, presentes e futuras.

Vem isto a propósito das notícias das últimas semanas, relativamente a dois estudos da UTAO, que vieram trazer alguma luz sobre os custos de duas medidas tomadas pelo Governo. A reavaliação dos ativos para efeitos fiscais e a alteração das condições do empréstimo ao Fundo de Resolução por causa do BES.

No primeiro caso, a informação da UTAO permitiu não apenas avaliar o custo da medida, como também o seu potencial benefício. E ficámos a saber que toda a argumentação por detrás da medida cai por terra.

Recorde-se que no OE/2016 o argumento era que ia permitir às empresas reavaliarem os ativos e melhorarem o seu balanço, com efeitos positivos na sua capitalização e acesso ao crédito. Ficámos a saber que este benefício foi capturado por meia dúzia de grandes empresas, com a EDP e a GALP à cabeça. Nada que não tivesse sido alertado na altura.

Além de ser visível o pouco impacto que a medida teria na esmagadora maioria das empresas, era também notório que se tratava de uma “engenharia” orçamental para maquilhar as contas. Encaixar mais 200 M€ para ajudar ao “milagre” orçamental de 2016, e deixar a fatura para depois de 2018. Na prática, emissão de dívida. Custo final? Um custo de financiamento do Estado a 15% a 3-4 anos, quando o custo da dívida pública nessa maturidade ronda os 1%.

Quanto ao empréstimo do Fundo de Resolução, o problema é de outra natureza. Não ponho particularmente em causa que era necessário alterar o prazo de reembolso. Ninguém de bom senso acharia que os bancos iam durante o ano de 2016 ou de 2017, pagar ao Fundo os 3.9 mil M€ necessários para este liquidar a dívida ao Tesouro.

Importa também esclarecer que o Fundo de Resolução consolida no perímetro das contas públicas (ou seja, conta para o défice e a dívida pública). Desta forma, a injeção de capital no BES, em 2014, foi ao défice (e consequentemente à dívida pública).

Desta forma, os fluxos financeiros entre o Tesouro e o Fundo de Resolução, decorrentes deste empréstimo, não têm impacto no défice em contas nacionais. Apenas o montante que o Fundo de Resolução recebe de contribuições dos bancos é que tem impacto no défice. Naturalmente, perdas de valor do fundo afetam o défice, mas se de facto a responsabilidade final for das instituições financeiras, esse é um efeito temporário.

Como é evidente para qualquer aluno do 1º ano de Finanças, a alteração de condições do empréstimo tem naturalmente reflexos financeiros. A alteração consistiu que o empréstimo do fundo não será pago ao Estado em 2017, mas apenas, na sua totalidade, em 2046. Se não houvesse uma taxa de juro associada a este diferimento, a perda de valor seria muito significativa. A uma taxa de desconto de 4% (que é neste momento a taxa de referência do mercado para dívida pública portuguesa a mais de 20 anos), os 3.9 mil M€ reembolsados apenas em 2046 valeriam hoje 1,2 mil M€.

Naturalmente, o Fundo paga uma taxa de juro ao Estado por este empréstimo. Aqui é que reside a diferença que a UTAO estima, de forma conservadora, em 630 M€. No novo acordo, entre 2017 e 2021 a taxa de juro é de 2% e após 2021 (até 2046) a taxa de juro será a do curso de financiamento da República na maturidade de 5 anos. É aqui que reside a “perda” se lhe quisermos chamar assim. O que é que a UTAO calculou?
A UTAO calculou o Valor Atual Líquido (VAL) quer dos juros que serão pagos até 2046 quer da amortização em 2046.

Ou seja, a UTAO assumiu que a partir de 2021 o empréstimo pagará 2% de juros (que é o custo de financiamento da República a 5 anos) e depois calculou o VAL usando diferentes taxas de desconto (2%, 3% e 4%). E com isso chegou ao resultado que com uma taxa de desconto de 3% o VAL é negativo em 630 M€. Ou seja, o valor hoje dos juros a receber a 2% mais a amortização dos 3.9 mil M€ em 2046 não é de 3.9 mil M€ (o valor que foi concedido de empréstimo), mas apenas de cerca de 3.3 mil M€. E se usarmos a taxa de desconto de 4% o VAL é negativo em 1.2 mil M€.

Mas porque se chega a este valor? Por um motivo simples: o empréstimo é remunerado a uma taxa a 5 anos, mas a operação em 2021 é a 25 anos (até 2046). Ora, as taxas de juro, por regra, são mais elevadas em períodos mais longos (diz-se que a curva da yield [rendimento] tem um declive positivo). A razão é simples de perceber: é mais arriscado emprestar a 20 anos do que a 2 anos. A 20 anos apenas podemos contar com incerteza.

Isso significa que este empréstimo terá durante grande parte da sua maturidade uma taxa de juro abaixo daquilo que é o custo de financiamento da República para o período do empréstimo. É daí que vem o tal Valor Atualizado Negativo (VAL), ou seja, que hoje aquele empréstimo naquelas condições vale menos que os 3.9 mil M€ que foram emprestados.

Mas, afinal, houve “borla” de 630 M€ aos bancos? Como vimos, o Fundo de Resolução é uma entidade na esfera do Estado e as contribuições da banca para o fundo dependem de uma lei que é definida pelo Parlamento. Contudo, os bancos são os responsáveis por pagar os 3.9 mil M€ e os respetivos juros. Logo, se a taxa de juro não fosse 2%, mas, alinhada com o custo de financiamento da República, de 3% (ou 4%), os bancos teriam de suportar um encargo maior, sob pena de o fundo apresentar perdas.

Ou seja, uma taxa de juro maior, em linha com o verdadeiro custo de financiamento do Estado, obrigaria no futuro a maiores contribuições da banca para o fundo. Nesse sentido, podemos afirmar que este VAL negativo é um “ganho” para os bancos no longo prazo.

Mais uma vez, não me choca particularmente a alteração de condições. O que me choca é a falta de transparência das decisões que são tomadas. E que o ministro das Finanças, quando confrontado, no Parlamento, com o pedido do VAL do empréstimo não tenha esclarecido os portugueses.

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