A narrativa do tiro no pé

Ao aumentar o IRC dissuadimos aquelas empresas que já cá estão e dissuadimos também aquelas que ainda cá não estão, mas que poderiam estar.

É sabido que a recente subida da derrama estadual de IRC às empresas com lucros superiores a 35 milhões de euros foi uma cedência política do Governo ao PCP e ao BE. Eventualmente, terá também sido uma forma de amenizar a frustração causada aos mesmos pela não introdução de uma contribuição especial sobre as energias renováveis. Mas, ao ter evitado um erro crasso de política económica, o Governo não se livrou de ter cometido um outro: o de cravar o prego no caixão que, simbolicamente, faltava para enterrar a reforma de IRC de 2014. Naturalmente, há agora que desenvolver uma narrativa para contrariar os críticos. A primeira narrativa foi política e começou a ser urdida logo que este Governo subiu ao poder: a descida da taxa de IRC estava politicamente dependente de uma outra coisa qualquer em sede de IRS que, tendo sido incumprida pelo executivo cessante, mais do que legitimava o novo executivo a dar o dito por não dito no IRC. A segunda narrativa é de natureza técnica e é mais recente. Nesta segunda corrente de propaganda, que nas últimas semanas tem vindo a ganhar tração, a taxa de IRC é irrelevante porque afinal não existe qualquer relação empírica entre o nível da taxa e o nível de investimento empresarial. É sobre esta última tese que hoje escrevo, no sentido de a refutar.

Começando pela investigação do passado, aquilo que os estudos teóricos não têm encontrado é relação estatística entre a fiscalidade agregada e o investimento global de uma economia. Mas, desagregando os dados macroeconómicos, a mesma investigação tem comprovado relações estatisticamente significativas, por exemplo, entre os impostos sobre o factor capital e o investimento realizado pelas empresas. Mais ainda, para além dos efeitos decorrentes das alterações às taxas de imposto, nos últimos anos tem também surgido nova investigação sobre a incerteza fiscal e os seus efeitos. O Joaquim Miranda Sarmento, meu distinto colega colunista aqui no ECO, já publicou artigos científicos sobre a instabilidade fiscal em Portugal. E eu próprio também tenho desenvolvido investigação sobre domínios conexos. De resto, a existência de bases de dados cada mais completas tem propiciado a realização de estudos de natureza empírica onde antes dominavam os modelos teóricos (que se socorriam essencialmente de abstrações matemáticas a partir de dados macro). Sem surpresa, os trabalhos académicos que hoje versam sobre os impostos pagos pelas empresas incidem não só sobre o nível geral das taxas, mas também sobre a sua estabilidade e complexidade administrativas.

Ora, de acordo com um inquérito a empresas (a maior parte das quais multinacionais) publicado este ano pelo FMI e pela OCDE no âmbito de uma reunião do G20, os factores que mais influenciam as decisões de investimento e de localização geográfica das empresas são (por ordem decrescente): a corrupção, a estabilidade política, a política fiscal, as condições macroeconómicas do país e, por fim, os custos laborais. Considerando apenas o domínio da política fiscal, os elementos mais importantes (novamente por ordem decrescente) são: a incerteza quanto à taxa efectiva de IRC; a taxa de IRC propriamente dita; a incerteza quanto ao pagamento e reembolso dos impostos sobre o consumo (em particular do IVA); a carga fiscal associada a impostos sobre consumo; e, por fim, a existência de tratados fiscais com países terceiros. As preocupações quanto ao nível das taxas são, assim, acompanhadas de preocupação relativamente à administração das mesmas. Sem surpresa, entre as causas da incerteza fiscal, as empresas sublinham a complexidade burocrática e documental associada ao cumprimento das leis fiscais, bem como a aplicação imprevisível e inconsistente das mesmas por parte das administrações tributárias. Uma e outra encontram-se indelevelmente interligadas.

A reversão da reforma do IRC em Portugal tem sido marcada por vários golpes, designadamente: a mudança de planos quanto à evolução da taxa geral; a alteração ao regime de “participation exemption”; a modificação dos prazos de reporte de prejuízos fiscais; e, agora, a subida da derrama estadual paga pelas empresas mais rentáveis. A reforma está a ser gradualmente desmantelada e será uma questão de tempo (sobretudo se se mantiverem as cedências políticas ao PCP e ao BE) até que nada reste da mesma. Está, pois, em marcha a nossa proverbial e secular tendência para a contra-reforma. O Governo e os seus acólitos atiram-nos com os números deste ano do investimento empresarial para afirmarem que as alterações à reforma de IRC não produziram qualquer impacto negativo sobre o investimento. É uma lógica da batata porque, por essa via argumentativa, o corolário teria de ser outro: aumentar o IRC aumenta o investimento! É o que dá confundir correlação, que neste caso será pontual, com causalidade. Na verdade, o investimento em Portugal é hoje resultado de uma conjuntura económica especialmente favorável (internacional, logo, também doméstica), e também da existência de financiamento abundante e barato proveniente do PT2020. Retirem-se estes dois efeitos e logo veremos como fica a coisa.

Além disso, o facto de serem poucas as empresas que em Portugal pagam a derrama máxima de IRC não pode ser motivo para justificar o aumento da mesma. Porque o nosso desafio está em conseguir ter entre nós mais empresas de grande dimensão e de elevada rentabilidade – não o de acabar com elas. Ao aumentar o IRC dissuadimos aquelas empresas que já cá estão e dissuadimos também aquelas que ainda cá não estão, mas que poderiam estar. De resto, é importante relembrar que a taxa de IRC faz parte dos modelos de avaliação de investimento, em particular daqueles que são usados na gestão profissional. E isto, note-se, faz toda a diferença num mundo que compete agressivamente por investimento estrangeiro. Os exemplos da Irlanda, onde o IRC é de 12,5%, ou da Hungria, onde é de 9%, deveriam servir de aviso contra a insensatez que é aumentar a fiscalidade sobre as empresas num país empresarialmente deficitário e endividado como o nosso. Portugal encontra-se hoje no 28º lugar do índice “Doing Business” do Banco Mundial. Mas no sub-índice dos impostos (“paying taxes”) encontramo-nos em 38º lugar. Temos um problema de morosidade no cumprimento das obrigações fiscais, que impõem custos de oportunidade e de transacção desnecessários às empresas. E agora, ao que parece, também queremos ter um problema de onerosidade. Enfim, é (mais) um fantástico tiro no pé.

Este autor escreve, por opção, de acordo com o antigo acordo ortográfico.

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