A insignificância das instituições

Num país decente, as lideranças são importantes, fazem a diferença, mas não são providenciais. A força das instituições, sim.

A limitação de mandatos presidenciais despoleta em mim sentimentos contraditórios. Por um lado, parece-me óbvio que a impossibilidade de reeleição retira incentivo a um bom trabalho no último mandato. Eu sei que tais cargos deveriam ser exercidos com espírito de missão, pelo que não poder neles permanecer seria irrelevante, mas nem todo o meu optimismo se consegue sobrepor ao que a realidade evidencia.

Por outro lado, não sou insensível ao argumento de que a perpetuação das mesmas pessoas nos mesmos lugares é geradora de vícios. No entanto, sendo Presidente da República e Presidentes de Câmara e de Juntas de Freguesia eleitos por quem é o destinatário da sua acção, não me pareceria mal deixá-los submeterem-se sem limite a esse escrutínio popular. Embora também seja verdade, como se aprende em Economia Pública, que soluções ineficientes podem ser democraticamente escolhidas se os custos estiverem concentrados em meia dúzia de votantes e os benefícios distribuídos por muitos eleitores.

Um estudo coordenado por Francisco Veiga e Linda Veiga, ambos da Universidade do Minho, para a Fundação Francisco Manuel dos Santos veio concluir que a limitação de mandatos havia contribuído para finanças locais mais sustentáveis, naquilo que, como os próprios autores sugerem, é um contributo para a discussão sobre as vantagens e os inconvenientes de não permitir recandidaturas eternas.

No caso da Procuradoria-Geral da República, fico menos dividida. Eu leio o artigo 220.⁰ da Constituição, em particular o seu número 3, e, de facto, não encontro lá a impossibilidade de recondução (mas eu sou economista, não tenho a plasticidade necessária à arte da Legística). Essa é, todavia, uma matéria de bom senso, não de Direito.

Segundo a alínea m) do artigo 133.⁰ da Constituição, o Procurador-Geral da República é nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo. E, portanto, a hipótese da recondução promoveria um alinhamento de interesses entre a Procuradoria-Geral da República e aqueles dois órgãos de soberania.

Mais uma vez, eu sei que em teoria os interesses do Governo e da Presidência da República não são distintos dos do país – e, nesse sentido, não haveria qualquer problema em permitir que o Procurador-Geral da República fosse premiado/castigado no fim do seu mandato com uma renomeação/exoneração –, mas, mais uma vez, o meu optimismo não chega à perda de contacto com a realidade.

Por isso, tratando-se do Procurador-Geral da República, que, como o próprio nome indica, serve os interesses da República, sou muito lesta a defender um mandato único, com uma duração suficiente para que a sua acção produza resultados (o que, atendendo à duração dos processos judiciais, podia, de facto, confundir-se com um cargo vitalício) e para que extravase um único Governo.

Infelizmente, a falta de norma constitucional e, sobretudo, de bom senso conduziu-nos aqui, onde a discussão foi trazida para o campo das trincheiras. Em vez de se ter enunciado o princípio da não recondução, pelos motivos que expus, deixou-se que o tema fosse analisado em função de pessoas concretas – que nunca é boa forma de estabelecer regras – e transformado numa disputa “Geringonça versus PàF”. Perde a Justiça, naturalmente.

Joana Marques Vidal terá o seu nome para sempre ligado ao combate à corrupção. Que se tenha permitido considerar a sua permanência à frente da Procuradoria-Geral da República levou a que agora a sua substituição seja apresentada como facto a merecer desconfiança, em vez de uma decorrência natural e lógica do funcionamento das instituições.

Ora, é aqui mesmo que eu queria chegar, às instituições. Todo este episódio não seria muito mais que um fait divers da política como a ela nos habituámos, não fosse dar-se o caso de ser sintoma de uma patologia grave: a da insignificância das instituições. Num país decente, as lideranças são importantes, fazem a diferença, mas não são providenciais. A força das instituições, sim.

Em Portugal, os destinos do país ficaram decididos quando D. Sebastião desapareceu em Alcácer-Quibir. E, aparentemente, só se resolvem quando ele regressar. Num dia de nevoeiro, ainda por cima. Portanto, cada um de nós pode demitir-se sem culpa da sua responsabilidade sobre a condução dos destinos do país, porque, aparentemente, a História desta nação faz-se de heróis. No Ministério Público, havia a heroína Joana Marques Vidal. Mas nós, cidadãos comuns, humildemente, não podemos assumir essa condição.

Foram cinquenta anos de História a ser narrada assim, provavelmente para justificar o heroísmo de quem nos governava solitariamente. O que me preocupa é que, mais de quarenta anos depois, a placa que dá o nome de Mário Soares ao jardim do Campo Grande o inscreva como “o fundador da Democracia”. Vejam lá que eu achava que a Democracia não era obra de um homem só, mas sim uma construção colectiva, que depende de todos e de todos exige um continuado trabalho para a manter e melhorar.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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