A caixa postal eletrónica: uma trapalhada que já vem de longe

  • Manuel Faustino
  • 5 Julho 2018

Eu, que me dedico a escrever novelas fiscais, construí uma teoria da conspiração. Vale o que vale, mas aqui a deixo.

Devo começar com uma declaração de interesses. Quando, com o Orçamento para 2012, e depois de um processo legislativo atribulado, se tornou “jurídica” a obrigatoriedade de adesão à caixa postal eletrónica para determinadas categorias de contribuintes (“jurídica”, porque foi esse Orçamento que criou a coima pelo incumprimento da obrigação de adesão e, consequentemente, a dotou da coercividade que caracteriza a juridicidade de uma norma, até aí uma pia intenção), declarei-me frontal opositor à imposição na parte em que os obrigados eram pessoas singulares. Fi-lo através do estudo “Notificações e Citações Tributárias Através do Serviço Público de Caixa Postal Eletrónica”, publicado – e aqui merece pública homenagem a sempre declarada e assumida independência do Centro de Estudos Fiscais, de que, à data, era Diretora a Dr.ª Maria dos Prazeres Lousa – na Revista Ciência e Técnica Fiscal, da responsabilidade daquele Órgão da Autoridade Tributária e Aduaneira, n.º 430, janeiro-junho de 2013, pp. 7-146. Anteriormente, com muito menor profundidade, já sobre o tema, e no mesmo sentido, me pronunciara na TOC – Revista da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, n.º 148, julho de 2012, pp. 36/49, sob o título “Da obrigatoriedade da adesão ao serviço público de caixa postal eletrónica”.

A verdade, há que reconhecê-lo, verificou-se então um intenso assédio a administração fiscal, pelos mais variados meios, então fez para que os contribuintes aderissem à caixa postal eletrónica. Esta, concessionada, por ausência de outro fornecedor do serviço aos CTT, através da Via CTT, integrada no serviço público de caixa postal eletrónica criado coxo em 2006, remontada à Lei 112/2006, de 9/6, assinalada com públicas e exuberantes manifestações de modernidade pelo Primeiro-Ministro de então que, segundo se propalou, foi o seu primeiro aderente, embora não conste que integrasse o universo dos obrigados a fazê-lo e muito menos se possa admitir como possível que logo, com a publicação da lei os CTT, estavam tecnicamente aptos a ativar caixas postais eletrónicas. Os contribuintes, creio que principalmente as pessoas singulares e por razões óbvias, foram mais céticos. Muitos terão aderido. Mas outros tantos, ou muitos mais – dos obrigados a fazê-lo – não o fizeram.

Recorde-se que, das pessoas singulares apenas são “obrigados” a aderir ao que ficou conhecido por Via CTT os sujeitos passivos de IRS e, por essa via, sujeitos a IVA (logo, apenas aqueles que exercem uma atividade económica integrada na categoria B) e que estejam integrados no regime normal de IVA (aqueles que obrigatoriamente, seja por trimestre, seja em cada mês) são obrigados a apresentar declaração de IVA.

E também se constatou que, por razões que se ignoram e que ninguém divulgou, desde 31 de janeiro de 2013 (data em que expirou o prazo para quem já estava abrangido pela obrigatoriedade de completar os procedimentos de adesão à Via CTT) até à semana passada, nada de novo se passou na ocidental praia lusitana sobre o assunto. As notificações e citações continuaram a ser feitas, com ou sem Via CTT, os serviços de finanças, assumidamente por aquilo que foi constando ao longo destes dias, não informavam os contribuintes deste dever de algum modo “extra-fiscal”, porquanto a Via CTT pode não servir exclusivamente para receber notificações fiscais, os serviços centrais deixaram de assediar com “textos pedagógicos” sobre a matéria e, principalmente, ninguém, que se saiba, tinha “levado com a ripa”, isto é, tinha sido coimado. Afinal, estava a escrever-se direito por linhas tortas: uma “obrigação” estava a ser transformada, pela prática reiterada de todos os agentes – e muito bem diga-se de passagem – numa “opção”.

Eis, porém, que de repente, e não é de estranhar nestes tempos conturbados em que já nem as estações do ano se conseguem confinar aos seus períodos “naturais”, mais uma intervenção agressiva da AT, acordando o monstro há quase seis anos adormecidos e atirando para cima dos “faltosos” com mais de 200.000 notificações de coima (falam em menos, mas é melhor acreditar neste número, provenientes de fontes seguras e que mais próximo estará a realidade, por não adesão à Via CTT, preponderantemente tendo por destinatários pessoas singulares. E com uma noção de oportunidade absolutamente espantosa:

  • Quanto já tinha começado o período de férias anuais e as pessoas se encontram pouco predispostas a litigar (mesmo que seja com as finanças), ficando, naturalmente com as férias estragadas;
  • Quando, muitas delas, estão em mãos com “divergências” no IRS e, mesmo que não coincidam, acumulam multidões nos serviços de finanças onde todos têm de ir ver se o assunto tem solução ou não;
  • Sem qualquer noção de que tanta notificação, podendo ser um problema de legalidade (o que não está em causa) é, também, necessariamente, um problema político e que, pelo que se indiciou, apanhou os responsáveis políticos “descalços”.

Têm chamado a este tipo de coisas “trapalhadas”. As reações subsequentes dão conta de que, de facto, estamos perante uma enorme trapalhada.

A centralidade da questão está agora em como “resolver”. Porque há os que já pagaram a coima com o medo das consequências. E há os que ainda não pagaram e aguardam que Deus, lá do alto do seu sacrossanto trono, se pronuncie. Cá por baixo, os seus obedientes servos, mandaram suspender tudo. Legalidade? Parece que já ninguém está muito preocupado com isso.

Eu, que me dedico a escrever novelas fiscais, construí uma teoria da conspiração. Vale o que vale, mas aqui a deixo.

Alguém, no interior da máquina fiscal, achou que era uma pouca vergonha os contribuintes estarem em situação de incumprimento perante a lei. Tinha de se repor a legalidade violada. E a maneira não era avisar ninguém a solicitar o cumprimento voluntário. Era confrontar de imediato a gentalha incumpridora com autos de notícias levantados conformemente com as regras e até assinados pelos chefes de finanças (as entidades competentes) às duas da manhã, enquanto dormiam, porque o “sistema” trata disso usurpando-lhes a assinatura (isto contou-me o meu amigo Anastácio Ambrósio, dedicado funcionário num serviço de finanças de província, cujo chefe ia tendo um colapso cardíaco quando ele lhe foi mostrar o papel que o primeiro contribuinte que foi à Repartição com o caso levava e, perante a resposta do chefe de que não sabia do se tratava, ele lhe retorquiu: ó chefe, mas isto está assinado pelo Senhor!). Depois disto feito, e perante a reação provocada não apenas no povo sofredor por tantas extorsões fiscais, como no interior da própria casa onde, parece, se preparavam levantamentos de rancho, os patamares de aproveitamento da situação, com salto de génio, encontraram arrimo no artigo 32.º do RGIT e os autores do imbróglio pensaram: o que verdadeiramente nos interessa é pôr a coleira no pescoço do cão (quer dizer é que adiram à Via CTT); portanto, a proposta passa a ser esta: eles aderem e o chefe, mediante requerimento que se for preciso a gente até manda personalizado, dispensa a coima. Então e os que já pagaram? A coima já se não pode devolver! Aí, aparece o José Soeiro, do Bloco de Esquerda, a dar uma mãozinha: seja de que modo for, há de arranjar-se um meio de resolver o assunto. E não o resolverá aos milhares de coimas indevidamente pagas, mas, porque o foram, nada a fazer: coima paga, é assunto definitivamente resolvido!

Agora a sério. Ter criado a Via CTT, a que recentemente veio juntar-se a morada única digital e os serviços público de notificações eletrónicas associadas à morada única digital (DL 93/2017, de 1 de agosto), constitui uma medida de modernização e, em muitos casos de evidente utilidade. Sobretudo quando falamos de pessoas coletivas devidamente reveladas em empresas estruturadas, departamentalizadas e com gestão profissional da sua atividade, na qual se inclui, naturalmente, a gestão dos seus meios de contacto com o exterior. Uma caixa postal eletrónica associada à sua sede, à sua “empresa”, não aquece nem arrefece, não a retira da sua localização, não lhe altera as rotinas, uma vez instaladas, pode nem sequer prejudicar as férias dos seus trabalhadores, se tudo for devidamente planificado. Admito o mesmo tipo de argumentos para uma pessoa singular que tenha uma empresa de grande dimensão, e quanto aos impostos que incidam exclusivamente sobre a empresa.

Integrar no domicílio fiscal de uma pessoa singular, porque aufere 12.000 euros de rendimento anual profissional na categoria B e já está, por isso, sujeita ao regime normal trimestral, do IVA, uma caixa postal eletrónica é, salvo melhor opinião, “pôr a coleira no pescoço do cão”, é uma forma moderna de escravatura, é pretender ter o contribuinte, em qualquer parte do mundo, seja qual for o fim da sua deslocação, disponível para receber uma notificação ou uma citação, ou seja, à disposição da AT. É transformar o contribuinte num caracol com a casa às costas. Todos os dias, de manhã, ele sai com o seu domicílio no bolso, no seu smartphone, no seu iPad ou no seu portátil. Vá para o escritório, ou vá para Moçambique passar as férias a que muito justamente tem direito enquanto pessoa humana que não é uma máquina, nem tem uma estrutura que a substitua na sua ausência.

Esta é que devia, a meu ver, ser a centralidade da questão que se devia estar a debater: qual é lógica e até a racionalidade de obrigar as pessoas singulares, exceto em contadas exceções, a aderirem a uma caixa postal eletrónica e, mais, a terem essa caixa postal eletrónica como parte imaterial integrante do seu domicílio fiscal que hoje, por via de outra coleira a que já estão agrilhoados, é, em regra, a residência habitual, constante do Cartão de Cidadão. Noutros países do nosso entorno jurídico, económico e fiscal, a adesão a estes instrumentos por pessoas singulares é opcional, salvo em determinadas situações, e nunca obrigatória.

Acresce o facto de atualmente, embora concessionado, o serviço público de caixa postal eletrónica Via CTT, ser prestado por uma empresa privada. O que claramente diminui as garantias de integridade e inviolabilidade da correspondência a notificar, depositada nos seus servidores. Tanto mais que, pela revogação da Base XII das Bases de concessão do serviço postal universal, feita pela Lei 160/2013, de 19 de novembro, deixou de existir a obrigatoriedade de regulamentação própria sobre as obrigações específicas do serviço da caixa postal eletrónica que decorrem de especiais exigências legais. Regulamentação que não chegou a ser produzida. E são do conhecimento público situações inconclusivas nos casos em que, por exemplo, é necessário ser certificada a data do depósito da notificação ou a data do acesso à caixa postal eletrónica: ninguém se responsabiliza por certificar tais momentos, em óbvio prejuízo das garantias do contribuinte, para, por exemplo, contarem o prazo para reclamarem ou impugnarem. Porque a lei é, pura e simplesmente omissa, o que já não sucede com a caixa postal eletrónica associada à morada única digital (ver artigo 8.º da respetiva lei). Não podendo deixar de se referir que a AT aceitou, ou não se opôs com sucesso, a que se mantivesse, nas notificações fiscais, a presunção de que ela ocorreria no 25.º dia após o depósito da notificação na caixa postal eletrónica, tendo esse prazo diminuído para 5 dias com a entrada em vigor da caixa postal eletrónica associada à morada única digital, ao que parece ainda nem sequer a funcionar.

Não posso deixar de terminar com a citação de OLIVEIRA ASCENSÃO que já deixei transcrita no estudo que identifiquei no início: “a paixão pela internet é muito maior por parte de quem domina o sistema que por parte daquele a quem se dirige… Desde os que lançam os bens informáticos até aos organismos públicos, desde os provedores de serviços em rede aos prestadores de conteúdo no comércio eletrónico, a desproporção de poder e de vantagens é evidente em relação aos destinatários… Quanto aos organismos públicos, conseguem uma ordenação de outro modo impossível de torrentes de dados e ganham formas efetivas de controlo sobre a vida dos cidadãos” (A Sociedade Digital e o Consumidor, in Direito da Sociedade de Informação, Volume VIII, Coimbra Editora, 2009).

Em conclusão: mais do que dispensar coimas, devia estar a discutir-se uma solução legislativa que dispensasse, em nome da preservação da liberdade individual numa sociedade democrática e da proteção e defesa dos direitos e das garantias dos contribuintes, incluindo o direito ao repouso e ao lazer, a obrigatoriedade da adesão das pessoas singulares às caixas postais eletrónicas, designadamente à Via CTT e à sua integração no respetivo domicílio (no sentido jurídico do termo, isto é, enquanto lugar do exercício de direitos e de cumprimento de obrigações), exceto nos casos que antes se julgaram poder ser excecionados. O que não obstaria, repete-se, à faculdade de adesão, a quem assim o desejasse.

  • Manuel Faustino
  • Jurista e Docente Universitário. Ex-Diretor de Serviços do IRS

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