• Entrevista por:
  • Helena Garrido e Paula Nunes

Caso Sócrates “é inaceitável e não é normal”

Há espaço para aparecer um partido justicialista como já o demonstraram Marinho Pinto e Paulo Morais. Defensor de uma reforma profunda, Garoupa considera que os políticos estão reféns da Justiça.

Nuno Garoupa é um dos poucos economistas portugueses que investiga a importância da Justiça para a Economia. Na primeira parte da entrevista que deu ao Eco o tema foi exatamente a Justiça. Sobre o processo do ex-primeiro-ministro José Sócrates considera que é “inaceitável que uma pessoa esteja nove ou 10 meses detida e que não haja dedução de acusação, ao fim de dois anos de ter terminado esse período de detenção”. Nem é normal nos padrões internacionais. Vai ainda mais longe, mostrando perplexidade por não existir uma consenso, na sociedade portuguesa de que o que se passa não é normal nem aceitável, uma vez que é uma situação generalizada na Justiça, não se verificando apenas com José Sócrates.

O economista que regressou para os Estados Unidos após três anos em Portugal à frente da Fundação Francisco Manuel dos Santos defende uma profunda reforma no funcionamento da Justiça, uma área que consome recursos acima da média europeia e tem eficácia reduzida. Mas considera que a classe politica está sem margem para fazer a reforma da Justiça por receio de ser acusada de o fazer para proteger os casos de banqueiros e políticos que estão a decorrer. O problema é que a própria Justiça enfrenta um enorme risco caso esses processos contra os “poderosos” redundem em arquivamento ou se percam nos meandros dos tribunais. “O problema do descrédito na Justiça é um sintoma muito complicado, que a nossa democracia terá que enfrentar a seu tempo”.

Eis a primeira parte de uma entrevista em que Nuno Garoupa considera ainda que há espaço para o aparecimento de um partido de tipo justicialista, como mostraram já as votações em Marinho Pinto e Paulo Morais. Falaremos depois da regulação e supervisão com o caso da EDP sob pano de fundo e da atual conjuntura.

Mudou alguma coisa em Portugal neste domínio da Justiça?

Depende da perspetiva. A Justiça, como a Economia, têm problemas estruturais e conjunturais. Alguns dos problemas conjunturais são ligeiramente diferentes do que eram há cinco anos. As estatísticas indicam que, nos últimos dois anos, há uma relativa descida nos processos entrados. Por isso, vamos ter provavelmente uma menor congestão este ano e no próximo e é possível que haja uma ligeira redução dos tempos médios. Isso são aspetos meramente conjunturais e com alguns ajustamentos que foram feitos nos últimos cinco anos. Não só do Governo anterior, mas até do governo antes do governo anterior.

A questão estrutural é que a nossa Justiça não é competitiva. E vai continuar a não ser, enquanto não alterarmos o governo da justiça, os incentivos que os operadores judiciários têm e a própria estrutura do aparelho judiciário.

E quais são as alterações fundamentais que a Justiça precisa?

O nosso modelo tem uma perspetiva francófona da organização judiciária, baseado nos conselhos Judiciários. E esse modelo está ultrapassado. Pessoalmente sou a favor da eliminação desses conselhos, mas compreendo que, no curto prazo, isso é complicado. O que tenho defendido é a fusão dos conselhos, a alteração da sua composição e competências. E a prazo a alteração do próprio modelo de seleção, promoção e incentivos que são dados aos magistrados.

E concorda com a independência do Ministério Público?

A independência do Ministério Público é um assunto delicado e diferente. Temos o Ministério Público, formalmente, mais independente da Europa. Não há nenhum Ministério Público que tenha um grau formal de independência maior do que o nosso. Basta dizer que, em muitos outros países, começando logo aqui por Espanha, o Ministério Público responde ao Ministério da Justiça, está de alguma forma dependente do poder executivo. Em França, por exemplo, o Ministério Público responde ao conselho dos poder judicial e portanto integra outras componentes da área judiciária.

"Há alterações profundas que têm que ser feitas no Ministério Público. A que se junta outra questão: somos dos países que gasta mais recursos na justiça. Em termos per capita, temos excesso de procuradores e de magistrados judiciais.”

Nuno Garoupa

Professor universitário

Há depois a questão da independência efetiva. O problema óbvio é o orçamental. O Ministério Público tem recursos limitados que não dependem do Ministério Público, mas sim do Governo. Depois há problemas processuais e de gestão. Nós economistas, quando ouvimos a frase: “o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada”, pensamos que os procuradores respondem a graus hierárquicos superiores. Depois descobrimos que não é assim. Os procuradores entendem que têm independência absoluta nos processos que têm em mão. E não respondem à Procuradora-geral da República pela gestão desses processos.

Há alterações profundas que têm que ser feitas no Ministério Público. A que se junta outra questão: somos dos países que gasta mais recursos na justiça. Em termos per capita, temos excesso de procuradores e de magistrados judiciais.

Quando se compara com a sua eficácia?

Em termos de eficácia, temos um problema gravíssimo. Porque temos em média menos eficácia do que outros sistemas que até são parecidos, como França, Espanha e Itália. E gastamos per capita quase tanto ou mais do que eles. E não vai ser alterado enquanto insistirmos no mesmo modelo.

Porque é que na sua opinião não vai ser alterado?

É evidente que os operadores do sistema não querem alterar. Mas não é uma observação no sentido negativo. Qualquer sistema tem operadores interessados na manutenção do status quo. Isso aplica-se à Educação, à Saúde, em qualquer área.

E em qualquer país?

E em qualquer país. Quando se diz que Portugal está cheio de corporações, isso é verdade em todos os países. Falta na opinião pública. Na Educação ou Saúde ou Segurança Social, praticamente todos os portugueses têm interesses diretos. Vamos ao médico, conhecemos pessoas que vão à escola e todos estamos preocupados com a nossa Segurança Social. Na área da Justiça, 90% ou 95% dos portugueses não tem interesses diretos. Tem uma perceção mediada pelos meios de comunicação social, mas a maior parte nunca entrou num tribunal. Nunca teve que defender ou acusar num processo em tribunal. Tem uma opinião negativa, fará os seus comentários, o seu protesto de sofá ou nas redes sociais, mas a maioria não está mobilizada para exercer a sua cidadania por causa das questões da Justiça.

Qualquer Pacto da Justiça, que passasse por uma reforma do Ministério Público, ia ter que enfrentar a acusação de que isto está a ser feito para ajudar os vários políticos e os banqueiros que estão a ser investigados nos casos mediáticos. A classe política está numa situação complicada, não tem espaço de manobra para fazer as reformas que a Justiça precisa.

Nuno Garoupa

Professor universitário

Mas isso também é verdade nos outros países e conseguiram fazer mudanças.

Sim. Mas as grandes mudanças feitas nos outros países são em parte determinadas por fatores externos. Muitos países, que têm feito reformas, entendem que a Justiça é parte do seu pacote competitividade e as mudanças ocorrem por pressão das empresas. Em Portugal, também há pressões mas não têm resultados. E é aí que na minha interpretação entra no poder político. O poder político está há muitos anos preso no status quo da Justiça, por duas razões fundamentais. Primeiro, porque o poder político lidou mal com a transição do Estado Novo para a democracia. Teve um complexo com os tribunais plenários, um sistema que interferia diretamente na justiça e considerou que o seu papel era retirar-se e entregar a Justiça ao autogoverno das corporações. Quando o poder político percebeu que isso era um problema, — estamos a falar de anos 90, das primeiras tentativas de reforma de Laborinho Lúcio –, não teve sequer apoio parlamentar para passar legislação.

Mais tarde, quando foram anunciadas as reformas por António Costa, no curto período que passou pelo Ministério da Justiça, levantou-se o segundo problema que nos ocupa até hoje: as acusações de corrupção e das pressões da classe política no Ministério Público e na Justiça.

A classe política retirou-se do assunto para não estar sujeita à crítica de que qualquer reforma da justiça é para favorecer determinados interesses políticos. E isso só piorou com os casos mediáticos que tivemos nos últimos cinco, seis anos.

É preciso não esquecer que a última reforma do processo penal, que é de 2007 -– acho que é uma crítica justa dizer que foi feita a reboque do caso Casa Pia — criou um problema: parece que todas as reformas são feitas a reboque de casos mediáticos. O que tem como reverso da medalha: então não se faz reforma nenhuma para não sermos acusados de estar a favorecer este ou aquele caso.

Qualquer Pacto da Justiça, que passasse por uma reforma do Ministério Público, ia ter que enfrentar a acusação de que isto está a ser feito para ajudar os vários políticos e os banqueiros que estão a ser investigados nos casos mediáticos. A classe política está numa situação complicada, não tem espaço de manobra para fazer as reformas que a Justiça precisa.

"Há espaço político para um partido justicialista. Não sei se é já nestas legislativas, se é nas próximas, mas acho que definitivamente vai aparecer.”

Nuno Garoupa

Professor universitário

Não tendo a classe política espaço de manobra para fazer as reformas, não vamos assistir a um agravamento ainda maior da ineficácia da Justiça, desencadeando uma revolta nas pessoas?

Esse é que o problema. Vamos assistir, se a conjuntura se inverter, a um agravamento da situação na Justiça. Os resultados de curto prazo que estamos a ter neste momento na Justiça são comparáveis aos de 2007/2008, fruto também daquilo que chamo a limpeza estatística que o Governo Sócrates fez. Quando há uma alteração da conjuntura económica os problemas voltam todos ao de cima. Onde tenho algumas dúvidas é que haja essa revolta. Porque acho que os portugueses, desse ponto de vista e como já disse, estão muito distantes desta questão. Não sei quantas pessoas é que decidirão o seu voto em função daquilo que sejam as mensagens dos partidos para a área da Justiça.

Podem não decidir o voto, mas não desequilibrará o regime, no sentido em que as pessoas vêm as sentenças associadas a cada um dos múltiplos casos da banca e de alguns políticos que estão todos a “zero” em condenações, como escreveu?

Isso poderá levar a maior abstenção. Mas não tenho a certeza que a abstenção afete, a curto prazo, os equilíbrios dentro do regime. Não acho que o regime dependa neste momento de ter uma abstenção de 45%.

E o aparecimento de um partido justicialista?

Isso tem condições. Foi ensaiado com Marinho Pinto. Não correu bem por razões que tem a ver com ele e não com falta de espaço político para um partido como esse. Paulo Morais cometeu o erro de ir às Presidenciais e não às legislativas. Cem mil ou 150 mil votos numas legislativas são três deputados. Nas presidenciais, isso desaparece. Há espaço político para um partido justicialista. Não sei se é já nestas legislativas, se é nas próximas, mas acho que definitivamente vai aparecer.

Há uma tendência para interpretar a crescente abstenção e algum desencanto, neste caso com os partidos da direita, como tendo a ver exclusivamente com as questões económicas, dos cortes, etc. Mas acho que as duas questões estão relacionados. Existe o desencanto por causa dos cortes, mas também por não se sentir uma melhoria em termos efetivos da justiça.

As coisas melhoraram porque essas pessoas [poderosas] são incomodadas. Agora se estes casos todos resultarem em arquivamentos ou em deduções de acusações que se perdem em tribunal, isso vai piorar ainda mais a situação. (…) Estamos num período muito complicado da Justiça, porque não sabemos como é que isto vai acabar.

Nuno Garoupa

Professor universitário

Continua-se com a ideia de que a Justiça protege os poderosos?

Exatamente. E isso continua a frustrar muitas pessoas. Não tenho a certeza que os atuais casos imediatos, que incomodam pessoas poderosas, seja diferente de há dez anos. As coisas melhoraram porque essas pessoas [poderosas] são incomodadas. Agora se estes casos todos resultarem em arquivamentos ou em deduções de acusações que se perdem em tribunal, isso vai piorar ainda mais a situação. Porque, por mais que haja a conversa da presunção da inocência, — e devemos manter a presunção de inocência –, o facto é que se criaram expectativas em termos sociais. E se essas perspetivas se revelarem infundadas, na esmagadora maioria dos casos, as pessoas vão interpretar como havendo um problema. Desse ponto de vista estamos num período muito complicado da Justiça, porque não sabemos como é que isto vai acabar.

É um problema mais grave para os políticos ou para a Justiça?

É um problema muito mais grave para a Justiça do que para os políticos.

De descrédito?

Sim. O problema do descrédito na Justiça é um sintoma muito complicado, que a nossa democracia terá que enfrentar a seu tempo.

"Sou a favor da delação premiada desde que se faça uma reforma profunda do Direito Penal. (…) Se vamos introduzir um instituto que tem a ver fundamentalmente com uma negociação entre o Ministério Público e o advogado, temos que alterar o nosso sistema.”

Nuno Garoupa

Professor universitário

É a favor da delação premiada?

A delação premiada encerra em si mesmo uma variedade de regimes. A delação premiada brasileira não é igual à espanhola ou italiana. O sistema brasileiro, que é o que tem estado no foco da nossa atenção, na verdade é uma importação do sistema norte-americano. Nomeadamente a introdução e preponderância de um princípio de oportunidade sobre um princípio de legalidade. Isto é, o Ministério Público passar a decidir quais os casos que quer ou não quer acusar, em função do que o Ministério Público entende que é ou não a sua agenda. E não em função do que é o grau de culpabilidade do suspeito, que é o sistema que obviamente funciona em Portugal e em muitos outros países continentais.

Sou a favor da delação premiada desde que se faça uma reforma profunda do Direito Penal. A introdução da delação premiada sem reforma do Direito Penal vai criar um transplante que dificilmente terá grande aplicabilidade.

Quer dar um exemplo?

A delação premiada nos EUA como no Brasil funciona como uma Justiça negociada entre o Ministério Público e o arguido. Com pouca intervenção do juiz. Ora nós somos um sistema com uma importante intervenção do juiz, nomeadamente o juiz de instrução e depois o juiz de tribunal. Evidentemente que se vamos introduzir um instituto que tem a ver fundamentalmente com uma negociação entre o Ministério Público e o advogado, temos que alterar o nosso sistema.

Os franceses e os italianos tentaram introduzir também a delação premiada e o sistema de Justiça negociada e falhou. Não produziu os resultados que se esperava, porque não fizeram a outra reforma.

Nós temos desde 2012, por força da União Europeia, o sistema de clemência na Autoridade da Concorrência, que efetivamente é uma delação premiada. Seria interessante ver se tem ou não funcionado. Não conheço um documento que faça um levantamento da aplicabilidade do programa de clemência na Autoridade da Concorrência. A impressão que tenho, a partir do que é a cobertura da atividade da Autoridade da Concorrência, é que não tem tido um êxito por aí além. É preciso ir perceber porque é que isso não acontece. E se isso não está relacionado com a ausência de reformas. Claro que estamos a falar de direito da concorrência, e não de direito penal.

Sobre o processo de José Sócrates: É inaceitável que uma pessoa esteja 9 ou 10 meses detida e que não haja dedução de acusação, ao fim de dois anos de ter terminado esse período de detenção. (…) É surpreendente não haver em Portugal um consenso de que isto é um problema.

Nuno Garoupa

Professor universitário

Dos casos a que temos assistido um dos que se arrasta há mais tempo é o de José Sócrates. Pode dizer-se que também se está perante a ameaça dos próprios direitos dos arguidos?

Por muito negativa que seja a minha avaliação política do mandato de José Sócrates ela não pode ser a base do Processo Penal. É inaceitável que uma pessoa esteja nove ou dez meses detida e que não haja dedução de acusação, ao fim de dois anos de ter terminado esse período de detenção. É evidente que temos um problema. É surpreendente não haver em Portugal um consenso de que isto é um problema. Isto não é uma situação aceitável.

Não é aceitável, mas é normal para os padrões internacionais?

Não é normal e não é aceitável. Temos que ter primeiro o consenso que não é normal nem aceitável. Agora se me disserem que o caso José Sócrates é uma enorme exceção, podemos entender que há uma razão e depois avaliar a atitude do Ministério Público. Mas não é uma exceção. E se é uma regra, então temos um problema que já nos deveria ter feito pensar se temos que alterar o funcionamento do Ministério Público. Não é aceitável ter um processo em que alguém é detido e que depois de se ter esgotado praticamente todo o prazo em que pode estar detido preventivamente, não há imediatamente dedução de acusação. Isto é uma coisa que faz uma enorme confusão a qualquer pessoa.

  • Helena Garrido
  • Paula Nunes
  • Fotojornalista

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