Vergonha, agora? Tenham vergonha

Nada disto tem a ver com consciências, ética ou avaliação da moralidade na política. O que está em causa parece muito simples: havia uma necessidade e apareceu uma oportunidade de a satisfazer.

Registe-se a irónica coincidência. José Sócrates, enterrado até ao último cabelo no mais grave caso judicial da democracia portuguesa, optou por sair em defesa pública de um amigo e colega de governo sobre quem há também agora graves suspeitas sem que nada a tal o obrigasse. Esse foi também o momento escolhido por amigos seus e antigos colegas de governo para pública e concertadamente se demarcarem do ex-primeiro ministro, empurrando-o para fora do partido. Das relações pessoais e da sua moralidade os próprios se encarregarão num episódio em que a política, os seus calendários e cálculos falaram obviamente mais alto.

Porquê agora? O Partido Socialista e os seus dirigentes tiveram três momentos óbvios e naturais para marcar a posição que as suas consciências obrigassem sobre o envolvimento de Sócrates na Operação Marquês.

O primeiro, naturalmente, em Novembro de 2014 quando o ex-primeiro ministro foi detido com estrondo para ser interrogado. E o segundo, logo a seguir, quando depois de ser ouvido lhe foi imputada a mais grave medida de coação, a prisão preventiva, e se soube formalmente qual a tipologia de crimes que lhe eram imputados.

Se é de ética e de moral que se trata, a desilusão, o choque, a vergonha e a raiva terão emergido em alguns espíritos na sequência destes graves avanços da Justiça. Mas, ainda assim, conceda-se. Mesmo na formulação “a confirmarem-se as suspeitas…”, o PS e seus dirigentes quiseram aguardar por chão mais firme para tomarem uma posição.

Além disso, estávamos nessa altura a cerca de 10 meses de eleições legislativas e o momento era tudo menos politicamente oportuno para discutir Sócrates e os seus passados com base numa investigação que não se sabia onde iria dar.

Meteram-se então as consciências individuais e colectiva na gaveta à espera de melhor oportunidade porque o momento era de “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. É daquelas frases que fica sempre bem em qualquer salão ou na boca de uma candidata a Miss Universo.

O processo judicial foi andando, as fugas de informação foram ocorrendo, como é habitual, Sócrates foi fazendo a sua defesa pública conforme pode e quis. Até que, em Outubro de 2017, chegámos ao terceiro momento em que seria natural, óbvio e consequente que os dirigentes socialistas soltassem finalmente a vergonha enraivecida que ia dentro deles. Foi quando foi produzida a acusação: mais de 4.000 páginas com Sócrates acusado de 31 crimes num caso que envolve 28 arguidos.

Também este marco, decisivo em termos processuais, foi ignorado pelas elites socialistas. Podendo recorrer à fórmula “a confirmar-se a acusação…” para traçarem a linha que, em seu entender, deve separar a ética e a moralidade da falta delas, preferiram ficar no mantra “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Iam então seguir com essa linha até ao fim, esperando um desfecho definitivo – condenação ou absolvição – para então se pronunciarem. Duvidosa e de desfecho tardio, mas era uma estratégia possível. E pelo menos era coerente.

Até esta semana em que, sem que nenhum dado novo sobre o processo de Sócrates seja conhecido – os factos e as suspeitas que existem são públicos e oficiais há sete meses -, vários dirigentes socialistas e ex-colegas de governo decidiram encenar o número da “vergonha”.

Nada disto tem a ver com consciências, valores éticos ou qualquer avaliação da moralidade na política. O que está em causa parece muito simples: havia uma necessidade e apareceu uma oportunidade de a satisfazer.

A necessidade era a criação de um cordão sanitário entre Sócrates, o partido e este governo. Daqui a um ano, o país está a entrar em pré-campanha eleitoral sem que seja possível antever em que ponto está o processo Marquês nessa ocasião, a divulgação de novos dados com impacto público ou casos laterais que possam surgir e que possam envolver membros do governo de Sócrates, como agora acontece com Manuel Pinho. O PS sabe que nunca se distanciou de José Sócrates de forma inequívoca, antes pelo contrário: alguns dos seus “atiradores” de serviço sempre preferiram tentar desacreditar o processo e a forma como a Justiça estaria a actuar.

A oportunidade surgiu precisamente com o caso Manuel Pinho. Foi o pretexto considerado ideal para, ao falar deste, meter Sócrates no mesmo saco no registo “e já agora…”.

Um atrás do outro, dirigentes socialistas deram voz à “vergonha” seguindo um guião que até parecia uma cartilha. Sem que se perceba porquê, a peça “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça” saiu de cena abruptamente. Percebendo que tinha sido empurrado do carro em andamento, Sócrates fez o que dele se esperava: bateu com a porta do PS.

A importância de perceber a natureza destas movimentações políticas surge porque agora vamos entrar de novo na época “eu é que sou o campeão anti-corrupção”.

Nos próximos meses vamos assistir a uma série de iniciativas, propostas legislativas, pacotes de medidas, estudos e debates sobre o assunto. Não é novo, acontece regularmente sempre que há mais um caso mediático e os políticos sentem que têm que mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma.

Desta vez, estando em causa os mais graves casos da democracia – envolvendo um ex-primeiro ministro que está já acusado e suspeitando-se que um membro do seu governo recebeu uma renda de um grupo privado enquanto o era – o rasgar de vestes em público por parte dos partidos vai ser ainda maior. Esta será a prova “as medidas que proponho são muito mais duras do que as tuas”.

Antes disso, teremos a prova simétrica desta, envolvendo sobretudo os partidos do ex-“arco da governação”, PS, PSD e CDS: “os teus são mais corruptos do que os meus”.

Tudo se passará no meio de grande azáfama mediática, debates televisivos, comissões de inquérito no Parlamento e juras colectivas de “intransigência para com a corrupção”, “doa a quem doer” e outras frases de fraco efeito.

Claro que, como se vê, muito disso será postiço, encenado, oportunístico e calculista. Nesta forma de estar e fazer política, a ética e a moral são absolutamente instrumentais e descartáveis. Usam-se e invocam-se quando se esperam ganhos eleitorais e de popularidade mas descartam-se à primeira oportunidade, quando o povo vira costas e já não está a olhar para o palco.

Risco da emergência dos populismos? Ele já cá está e muito bem representado nos políticos e partidos do sistema. Não parece haver mercado para mais.

Nota: Por opção própria, o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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