Um sistema ferroviário em colapso

O Governo transforma, há três anos, sectores como o ferroviário nas molas de amortecimento dos exercícios orçamentais.

Dez das 18 capitais de distrito não contam com um serviço ferroviário capaz de atingir pelo menos uma velocidade média de 90 km/h. Para três delas, aliás, não há sequer serviço. O último plano de desenvolvimento da rede data de 1974, literalmente no tempo da outra senhora. Se, no longo prazo, as perspectivas são inexistentes porque os governos não assumem objectivos estratégicos, na actualidade o dia-a-dia faz-se de supressões de serviços por falta de comboios, hoje mais massivas do que em qualquer outro período da história, incluindo as faltas de carvão de 1944-45 ou quando no final dos anos 80 se cozinhava já o fecho de muitos ramais.

As oficinas de manutenção são catedrais de comboios parados e sem pessoal, com saídas a todo o vapor e sem autorização para contratações, numa compressão de meios sem paralelo que se aprofundou com o virar da página da austeridade, em 2016, condenando CP e EMEF a viverem com menos do que no período da Troika.

Apesar dos repetitivos e histriónicos anúncios governamentais, a ferrovia sobrevive hoje com menos meios do que alguma vez teve. Se em 2016 planeava alugar comboios a Espanha para fazer face ao aumento da procura que a nova postura da CP induziu nos anos anteriores, em 2018 a empresa não consegue sequer manter a oferta que tinha em 2014. 30% das carruagens Intercidades estão paradas por falta de manutenção e muitas vezes mais de 50% das automotoras diesel que a CP opera estão também paradas porque, velhas e sem investimento, sofrem uma acelerada erosão. Além disso, cerca de 50% da sua frota carece de substituição imediata e outros 50% têm esse horizonte até 2025-2030.

É hoje habitual Beja passar alguns dias sem ter sequer uma automotora à disposição ou chegar a Braga não a bordo do Pendular, mas de um comboio regional sem qualquer conforto. É a face visível da pouco transparente execução orçamental deste governo, que abdicou de orçamentos rectificativos para corrigir desvios em rubricas importantes (impostos, despesas com pessoal) e recorre antes a expedientes menos controláveis para chegar ao número mágico (objectivo cuja importância não contesto, aliás).

O problema não assumido é a falta de dinheiro. Contrariamente à narrativa ensaiada, nenhum exercício orçamental pode fugir à natureza limitada dos fundos disponíveis. Incapaz de assumir escolhas difíceis nos temas preferidos dos seus parceiros parlamentares e das suas ruidosas clientelas, o Governo transforma, há 3 anos, sectores como o ferroviário nas molas de amortecimento dos exercícios orçamentais.

Sem anúncios nem pedidos de desculpa, paulatinamente, o governo gere um Ferrovias 2020 que de 2700 milhões de gordos anúncios passou a totalizar pouco mais de 1500 milhões, eliminando novas ligações e limitando objectivos de outras. Ao mesmo tempo que anuncia dotações orçamentais para pôr obra no terreno e repor o funcionamento de comboios parados nas oficinas, vai adiando a assinatura para lançar um novo concurso ou para admitir pessoal. Não são sequer cativações e cada expediente encontrado é ainda menos escrutinável e antecipável que o anterior. Na prática, a cada nova urgência corresponde maior dose de anúncios e novos adiamentos de execução.

Consegue o ministro Pedro Marques garantir que não existem avisos das estruturas do sector para a possibilidade de operação e infraestruturas colapsarem? Consegue Pedro Marques garantir que o que anuncia será por fim cumprido? Ou terá pelo menos a honestidade de sinalizar o que vai alterando e adiando?

Se a tutela não consegue poupar-nos ao espectáculo deprimente das suas acções e omissões, talvez fosse altura do primeiro-ministro assumir a pasta e reorganizar prioridades dentro do seu governo. Afinal de contas, se este é o resultado do virar de página da austeridade, o que devemos esperar quando voltarmos oficialmente a tempos de crise?

Nota: Por opção própria, o autor não escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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