República em Outubro

O patriotismo da ética republicana é insípido, monótono e enfadonho porque superficial, falso e refém do politicamente correcto.

Uma pequena distância separa a Praça do Município do Bairro da Mouraria. No dia da celebração da República são dois países no centro da cidade.

Percorrer as ruas da Mouraria é uma aventura exótica típica de um souk, uma viagem em que as meditações do fado se misturam com os sons do Médio Oriente, as melodias de Bollywood e os ritmos encantatórios da China. A cor dos saris escorre pelas paredes do Bairro, o cheiro a especiarias evoca os fumos da Índia e entra pela porta dos talhos halal e invade as lojas de kebabs decoradas com espelhos em forma de estrela sobre azulejos de Sacavém. Nos becos da Mouraria já não existem nem chulos nem malandros, os poucos residentes portugueses dedicam-se ao pequeno comércio em extinção e referem-se aos novos habitantes como “aquela gente”.

A gente do mundo instalou-se e a gente do Bairro não percebe. Numa antiga carpintaria no Largo da Severa um restaurante indiano prospera com os novos locais e os novos visitantes. Os nativos não gostam da comida, demasiado picante naquele tom escarlate típico do caril. No Bairro da Mouraria vivem 52 nacionalidades, cerca de 6.000 habitantes e subitamente um Bairro marginal tradicionalmente tido como o lugar da plebe de Lisboa transforma-se numa metrópole multicultural sem precedentes. Os novos habitantes acomodam-se 5, 8 ou 10 em cada quarto, abrem lojas de bijutaria no primeiro vão de escada, vendem artesanato do Nepal, estabelecem-se como barbeiros especialistas em cabelos africanos ou cabeleireiros versados nos penteados para mulheres orientais. Às horas da oração, a Mesquita fica completa e os homens rezam no pátio sob o céu de Lisboa. As mulheres não entram. No Martim Moniz, a verdadeira Chinatown de Lisboa, a pastelaria chinesa substitui a leitaria local, os livros em mandarim cruzam-se com caixas de mercadoria em trânsito, um jornal chinês é editado com grande circulação e uma jovem chinesa consulta com naturalidade o seu smartphone protegido com uma capa que reproduz a calçada portuguesa. Numa loja de porcelana da China é visível em lugar de destaque uma selfie da proprietária com o Presidente da República Portuguesa.

E com a imagem do Presidente da República o regresso à Praça do Município. As celebrações da República são um ritual vazio perante a complexidade do país real. A celebração de uma celebração no dia em que se deve ser patriota. No dia em que se devia afirmar a autonomia de uma nação livre e competente para organizar a sua política e pensar a sua economia, tudo se resume às platitudes desconcertadas e ao discurso da perfeita harmonia entre os filhos da nação. Um registo pedestre de quem fala para a sua imagem no espelho. Da Mouraria ao Município desfila a rápida mudança cultural, a revolução demográfica, a competência da democracia, a erosão da soberania, a força inexorável da globalização. Pelas filas alinhadas em plena Praça só circula o assunto do momento, a intriga política, a preocupação com o poder. Não existem globalistas nem nacionalistas, não existem preocupações com a certificação das instituições políticas nem com a resiliência das instâncias económicas, não existe a consciência de que as vozes na Praça do Município não falam a língua da Mouraria, pois a língua da Mouraria é hoje a expressão franca e cosmopolita de um mundo global. E os nativos da Mouraria não entendem o que se passa no dia em que se deve ser patriota. Os hábitos, os costumes, os modos de vida, a história, a cultura, o sentimento de pertença a um lugar, de pertença a uma comunidade de destino, tudo se dissipa na Baixa Pombalina e não chega ao dia em que se celebra a República. Será possível um patriotismo em que não se celebra a política da pertença?

O patriotismo da ética republicana é insípido, monótono e enfadonho porque superficial, falso e refém do politicamente correcto. Declarações vagas sobre a tolerância e a diversidade são peças estafadas de um enredo cansado. Para o benefício da modernidade europeísta dos portugueses, em vez dos discursos que aplicam literalmente a filosofia política de John Lennon na canção Imagine, celebre-se a República com um grande concerto virtual por toda a metrópole de Lisboa e a perder de vista no Portugal global.

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