Os lesados de Sócrates

Vemos uma associação de lesados do Sócrates aos quais convinha confrontar com os encómios e louvores que então teceram na sua jornada ascensional até ao poder.

No livro “Música para Camaleões”, que contém 16 contos de Truman Capote, existe um deles que nos traz “Mr. Jones”. Uma personagem que não saía do seu quarto, em Brooklyn, mas que recebia pessoas. Não era traficante de droga, nem cartomante, as pessoas vinham apenas para conversar com ele. E em troca das suas palavras e conselhos, as mesmas, gratas, davam-lhe algum dinheiro. Capote, que morava ao lado, nunca conversou com ele. Apenas viu aquela figura marcante, de rosto pálido, com um sinal de nascença na bochecha esquerda. Era cego e também aleijado, quase incapaz de se deslocar. Um dia, porém, Mr. Jones desapareceu. Dez anos mais tarde, em Moscovo, com 18 graus negativos, numa carruagem do metro, Capote vê o Mr. Jones. Não lhe consegue dirigir palavra porque este se levanta, “firmando-se num par de pernas robustas e sadias, se pôs de pé e saiu da carruagem em passada larga”. Parece que ao fim de alguns anos de processos judiciais, diversos dirigentes do PS e figuras que lhe foram próximas só nos últimos dias viram em José Sócrates um Mr. Jones.

A dúvida que perpassa por todos é porquê só agora este afastamento de personalidades gradas ou com visibilidade no partido? Havia um silêncio estratégico como se o que é da Justiça ficasse apenas na Justiça, evitando assim enlamear o PS e uma série de homens e mulheres que fizeram parte dos seus Governos, mantendo um legado político que continua a ser marcante para uma enorme ala do PS. E relembro que António Costa por sms enviado a todos os militantes antes de ser eleito como líder do partido escreveu o seguinte: “Caras e caros camaradas, estamos todos por certo chocados com a notícia da detenção de José Sócrates. Os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a acção política do PS, que é essencial preservar, envolvendo o partido na apreciação de um processo que, como é próprio de um Estado de Direito, só à Justiça cabe conduzir com plena independência, que respeitamos. Ao PS cabe concentrar-se na sua acção de mobilizar Portugal na afirmação da alternativa ao governo e à sua política. Um abraço afectuoso do António Costa”.

Uma tomada de posição correcta, perfeitamente perceptível e compreensível e, acima de tudo, realista face ao momento vivido que podia afectar a imagem do PS. Logo, esta mudança de agulhas dos últimos dias, e como se de um comité se tratasse porque parecia que as reacções eram encadeadas, levaram as próprias bases socialistas a não entenderem bem o que se passa. Por um motivo: o PS não é ingrato e comparado com outros tem na sua matriz essencial ser fraterno e solidário com os seus. José Sócrates é actualmente um homem só, não tem apoios, perdeu influência mediática, mas só há uma aldeia gaulesa que resiste a este cenário: exactamente, as bases do PS, que não esquecem as suas vitórias, a primeira maioria absoluta e sobretudo o seu primeiro Governo.

Há muitos anos rolava na televisão uma campanha publicitária, nos meses antes do Verão, sensibilizando as pessoas para não abandonarem os seus animais quando iam de férias. José Sócrates, o famoso animal feroz, hoje, está ferido e abandonado, quase moribundo. E não é bonito o espectáculo de ver muitos que o elogiaram, lhe teceram loas, jornalistas servis, empresários pusilânimes, políticos que lhe devem tudo e muitos que conviveram com ele de perto e que parece que só agora acordaram, o que a meu ver é ignóbil, a espezinharem alguém que ungiram como “menino de ouro”. Parece uma inaudita associação de lesados do Sócrates aos quais convinha confrontar, pois parece que a memória é algo ténue, com os encómios e louvores que teceram na sua jornada ascensional até ao poder e depois durante o seu exercício. Mas há uma pergunta para o próximo Congresso do PS que vale um milhão de dólares: qual será a reacção das bases socialistas, se alguém subir ao palco e pedir uma saudação “para o nosso camarada José Sócrates”? Aí veremos se uma coisa são os dirigentes e outra os socialistas anónimos. Se Sócrates foi expurgado definitivamente ou se, recebendo aplausos, mantém esse bálsamo de resistência.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

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