Não deixes que os factos estraguem um argumento ideológico

O Estado não tem falta de dinheiro. É antes mal estruturado, desorganizado, capturado por interesses, partidarizado e pouco exigente.

Tão certo como os incêndios no Verão é o aparecimento de argumentos como o “desmantelamento do Estado” e da “defesa de menos Estado” para justificar os nossos erros e falhas que, infelizmente, fazem parte da nossa cultura e do nosso ADN. Foi isso, claro, que já começou a ser feito a propósito da tragédia de Pedrógão Grande e do preocupante (e cómico, ao mesmo tempo) roubo de armamento em Tancos, por entre outras explicações e soluções demagógicas e populistas.

Se os nossos problemas estruturais se resolvessem atirando-lhes para cima pazadas de dinheiro, seríamos certamente um farol do desenvolvimento. Não foi por forretice ou por termos uma sucessão de governos sovinas, “botas de elástico” e mais salazaristas do que Salazar que levámos o país três vezes ao limiar da bancarrota, a última das quais há seis anos, pois não?

Aliás, o exemplo do SIRESP está à mão e até vem a propósito. Faltou dinheiro para um sistema integrado de comunicações de emergência? Não parece. O custo do SIRESP para os contribuintes, próximo dos 500 milhões, mostra que há uma diferença enorme entre gastar dinheiro e gastar dinheiro bem gasto. Não foi por “falta de Estado” (leia-se, ir ao bolso dos contribuintes) ou por “desmantelamento do Estado” (leia-se, tentar fazer poupanças sensatas onde é possível) que as autoridades deixaram de estar equipadas convenientemente.

O problema, o eterno problema, é que o Estado é mau gestor e péssimo negociador, está capturado por interesses privados e vai promovendo a desresponsabilização dos agentes políticos que permitem a perpetuação deste estado de coisas por acção ou omissão.

Foi a troika e a austeridade que negociaram o SIRESP? São as poupanças que se tentaram fazer no Estado que afectam o seu funcionamento? Ou a incompetência começa no fornecedor e acaba no cliente, que não se soube acautelar contratualmente?

Se falta dinheiro para o SIRESP ou meios para a Protecção Civil, tenho algumas soluções: ir buscar uns milhões ao que se meteu na Caixa Geral de Depósitos, por exemplo (cerca de cinco mil milhões), e outros bancos; ou na descida do IVA para a restauração (350 milhões por ano) que, como se sabe, é um sector em dificuldade com a falta de turistas; ou no corte do horário semanal da função pública para 35 horas (várias dezenas de milhões), porque as 40 horas semanais só estão reservadas para o privado.

Como se vê, dinheiro dos contribuintes há, sobretudo agora que acabou oficialmente a austeridade. O resto são opções dos governos, deste e dos anteriores.

No meio de tantos milhões não se conseguiram uns milhares, poucos, para reparar a rede em Tancos e para montar rapidamente um sistema de videovigilância, avariado há dois anos? Vamos lá ser mais exigentes nas explicações e mais assertivos nas suas consequências.

O argumento da falta de dinheiro não é o único que esbarra naquela coisa aborrecida que são os factos.

Sobre incêndios, há também outros argumentos sobre causas e soluções. A primeira, claro, é a dos eucaliptos. Não discuto se são excessivos ou não na composição da floresta portuguesa. Mas será que a relação entre eucaliptos e incêndios – e é isso que está em causa neste assunto – é mesmo assim tão evidente como querem fazer crer, por exemplo, o Bloco de Esquerda e do PCP? Ou o problema português é de gestão de floresta, com ou sem eucaliptos?

Vejamos. Como as empresas de celulose preferem o eucalipto como matéria-prima, então as suas próprias florestas têm uma boa percentagem dessa espécie, o que é verdade. Então, se a simples existência de eucaliptos é causa de incêndios e da sua rápida propagação, só podemos concluir que a área ardida nas florestas geridas pelas empresas de pasta de papel deve ser proporcionalmente muito maior do que a restante floresta. Certo? Errado.

É isso que diz, pelo menos, quem conhece o assunto e sabe fazer contas: “Por umas contas que fiz aqui em cima do joelho, se a média nacional de área ardida ficasse pelos 100 mil hectares previstos (e não fica), a taxa de incêndio que teríamos no país, para comparar com os 0,3% desta empresa de celulose, seria um pouco mais de 1,5% se contarmos os matos, e entre os 3 e os 3,5% se contarmos só os povoamentos. Fiquemos pelos 1% (se é verdade que o que interessa é a área total de povoamentos, também é verdade que tipicamente mais de 50% da área ardida são matos) para comparar com os 0,3% e concluímos que o Senhor Louçã, do fundo do seu sofá, responsabiliza pelos fogos em Portugal os que ele chama de eucaliptocratas, isto é, as pessoas que conseguem ter uma taxa de incêndio de 0,3% para comparar com o que nós, como sociedade, temos para apresentar em termos nacionais, 1% (contas muito por baixo)”

Então, talvez o problema esteja mais na forma como a floresta é gerida do que na estrita composição de espécies, não? Não é preciso ser especialista para saber ler estes números.

Se a floresta das empresas de celulose é 100% certificada internacionalmente – o que obriga a cumprir mesmo, e não apenas a figurar em leis bem-intencionadas, uma série de regras que passam pela limpeza, espaço entre árvores ou abertura de caminhos – e arde muito menos do que a floresta do Estado ou de outros proprietários, que só está 20% certificada, o problema estará nos eucaliptos? O que os dados nos mostram é que a relação não é entre eucaliptos e incêndios. É, antes de mais nada, entre má gestão florestal e incêndios.

Claro que é muito mais fácil atirar para a opinião pública uma frase do género “temos que acabar com os eucaliptos”, que toda a gente entende e que, por cima, acena com o “papão” do “grande capital e dos interesses das celuloses” do que dizer “temos que limpar as nossas florestas, fazer a gestão integrada dos terrenos mais pequenos e sem escala e abrir caminhos corta-fogo”, que uma grande parte dos 400 mil produtores florestais entendem como mais despesa e uma carga de trabalhos para si, sem pensar no bem comum que é suposto o Estado defender.

O mesmo se passa com os saudosos governadores civis. Diz-se que eles eram essenciais na coordenação de operações de combate aos fogos no terreno. Tinham, de facto, funções nessa área mas estas foram transferidas para outros organismos do Estado, centrais ou municipais. Ou seja, não ficou um vazio de decisão ou operacional. Mas, acima de tudo, desde 2011, quando a figura dos governadores civis foi legalmente extinta, há evidência de uma sucessão de casos de descoordenação no combate a incêndios ou na operação da protecção civil? Isso está estudado e suficientemente comprovado? Ou é o habitual “achismo” ideologicamente motivado? Claro que a própria ministra da Administração Interna já se agarrou a essa possibilidade, porque estamos na fase em que qualquer coisa que possa ajudar a explicar Pedrógão Grande, para além do caos e descoordenação do socorro que parece cada vez mais evidente, serve como argumento que se atira para o espaço mediático. Se esses argumentos são verdadeiros ou falsos, sustentados ou fraudulentos, são detalhes pouco importantes.

“Não deixes que a verdade dos factos te estrague um argumento ideológico” parece ser a máxima de muita gente nestas discussões.
E, enquanto nos entretemos com estas discussões, evitamos enfrentar a dura realidade que nos persegue. O país em geral e o Estado em particular são avessos ao planeamento, organização, rigor, avaliação e responsabilização. Somos tão fracos nisto como depois somos bons a reagir, a improvisar, a ajudar, a contribuir, a abraçar.

O Estado não tem falta de dinheiro. É antes desorganizado, capturado por grandes e pequenos interesses – sejam eles empresariais ou corporativos -, mal estruturado, partidarizado e pouco exigente. É pena que para resolver estas questões estruturais não se veja muita gente com propostas sérias ou com vontade de mudar, de facto. O populismo e a demagogia das soluções rápidas e mágicas para problemas antigos e complexos é sempre mais fácil.

Perante isto, não nos admiremos com as suas consequências, humanas ou materiais. Elas vão continuar, porque quando se erra continuadamente no diagnóstico nunca se combate verdadeiramente a doença.

Nota: O autor escreve segundo as regras do antigo acordo ortográfico.

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