A variante e a viela

Cheguei ao final do trabalho profundamente desencantado. E desencantado porquê? Porque é um trabalho de indiscutível mérito técnico, mas cujo propósito final me parece tudo menos meritório.

A poucos dias de ser conhecida a proposta de Orçamento do Estado para 2018, vou aproveitar este compasso de espera para me debruçar sobre o estudo “Estratégias Orçamentais 2017-21” da autoria de Ricardo Cabral, Luís Teles Morais, Joana Andrade Vicente e Paulo Trigo Pereira, porque já há algum tempo que queria escrever sobre o assunto, mas só agora encontrei a oportunidade de o fazer.

Em jeito de avaliação sumária, devo dizer que cheguei ao final do trabalho profundamente desencantado. E desencantado porquê? Porque ali está um trabalho de indiscutível mérito técnico, mas cujo propósito final me parece tudo menos meritório.

Começando pelas críticas positivas, estou absolutamente solidário face a diversas observações que os autores fazem à actuação do Governo. Primeiro, sobre a ausência de uma estratégia de médio prazo para a gestão de recursos humanos do Estado, de facto, não se vislumbra qualquer visão de médio prazo. Note-se que neste ponto em particular não está em causa o nível da massa salarial; trata-se somente de observar que não existe na estratégia do Governo qualquer orientação sobre a composição dos recursos humanos por área funcional do Estado, nem qualquer indicação de como poderiam ser reformuladas as respectivas carreiras. Tal como os autores, também eu estranho que no programa de estabilidade 2017-2021 apresentado a Bruxelas nada de substancial exista relativamente a uma área que representa 25% da despesa total das administrações públicas.

De igual modo, não posso deixar de manifestar a minha solidariedade quando os autores apontam o dedo à opacidade orçamental do Estado e, em particular, ao Governo. São mencionados dois exemplos concretos. Primeiro exemplo: a evolução dos gastos públicos em consumos intermédios que, de acordo com os planos do executivo, deverão baixar de 5,6% do PIB para 5,0% entre 2017 e 2021. O problema, como eu próprio já tive oportunidade de comentar noutra ocasião, é que ninguém conhece ao certo o enigmático programa de revisão de despesa do Estado que alegadamente está em curso e no qual assenta aquela redução de despesa. A falta de informação leva, pois, os autores a questionarem a exequibilidade do exercício orçamental nesta matéria. Mas há ainda um segundo exemplo de opacidade: a falta de informação que a Segurança Social teima em não ceder (nem mesmo ao Conselho de Finanças Públicas que publicamente já a sancionou) sobre as remunerações e contribuições dos trabalhadores em final de carreira. Na ausência destes dados, concluem os autores, é difícil avaliar a progressão estimada para a despesa pública com pensões. Concluem muito bem.

Por fim, a terceira crítica positiva que tenho para fazer e que diz respeito à forma como os autores se referem à gestão do Governo em matéria das despesa com pessoal. Passo a citar: “Parece, assim, incerta a exequibilidade e o cumprimento dos objetivos anunciados pelo Governo, respeitante às despesas com pessoal (…) quando não estão a ser atingidas as metas pretendidas de saídas para aposentação e quando se verifica a ausência de medidas especificadas para fazer face a este percalço” (p.18). Ou seja, os autores parecem corroborar as recentes observações do FMI e da Comissão Europeia e que consistem no seguinte: a redução de emprego público com a qual o Governo se comprometeu é para inglês ver. E aqui passo às críticas negativas, começando pelo capítulo sobre emprego público.

Ora, os autores são inequívocos na forma como colocam a questão: o aumento nominal da massa salarial da administração pública, para a qual se prevê um crescimento acumulado de 4,9% até 2021, é insuficiente dada a inversão do Governo face ao seu compromisso orçamental neste domínio e é também insuficiente para acomodar o descongelamento das carreiras. É preciso mais. Assim, é proposto um aumento da massa salarial de 2,5% ao ano até 2021 – mais do dobro do que está previsto. Ademais, para de algum modo justificarem (ou racionalizarem) o volte-face do Governo, os autores apontam como evidência o facto de o rácio de funcionários públicos em Portugal face ao total de empregados ser baixo face a outros países. É facto que assim é. Porém, nunca foi essa a principal crítica à despesa com pessoal em Portugal. A crítica principal foi sempre dirigida não ao número de funcionários públicos, mas sim ao nível dos seus salários, isto é, à massa salarial em percentagem do PIB. E é precisamente esta comparação internacional que o estudo, fatalmente, omite. É fatal porque ainda hoje, mesmo depois dos cortes dos últimos anos, a despesa com pessoal do Estado português (cerca de 11% do PIB) continua a ser superior à média da zona euro (10%).

Enfim, a conclusão final do estudo é a seguinte: há despesa que está suborçamentada (designadamente, pessoal e saúde) e a adopção de uma consolidação orçamental menos intensa, permitindo uma maior expansão do PIB nominal, levaria até a uma redução maior do rácio de dívida pública em percentagem do PIB do que a estratégia actual. Ao fim e ao cabo, a recomendação aponta no sentido de voltarmos aos multiplicadores do PIB associados ao aumento da despesa pública, mas que infelizmente, pelo menos entre nós, são sempre melhores no papel do que na realidade. Não obstante, a variante ao programa de estabilidade 2017-2021, como lhe chamam os autores, é muito próxima do próprio programa de estabilidade e, independentemente de algumas críticas meritórias, confirma largamente a orientação orçamental do Governo. É quase um exercício de ratificação de uma orientação que, até ver, tem ido no sentido certo: o da consolidação orçamental (e, sabe-se lá como, pelo lado da despesa!). Na verdade, as grandes divergências apontadas pelos autores, as que são materialmente relevantes, são as despesas com pessoal e as da saúde (sendo que nestas últimas se aborda a manifestação do problema, mas não o problema em si). E aqui chegamos ao tal sentimento de desencanto quando constatamos que, com tanto ênfase no emprego público e na massa salarial do Estado, a variante deixa de ser uma variante, transformando-se numa viela.

Nota: Por opção própria, a autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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