Segurança Social: a profundidade das medidas mediáticas

  • Margarida Corrêa de Aguiar
  • 19 Outubro 2016

O sistema de segurança social contributivo está a ser pervertido. É cada vez menos seguro social e cada vez mais um sistema estatal cujo financiamento são impostos gerais consignados.

A análise da proposta do Orçamento do Estado é sempre um exercício difícil.
E difícil porque o relatório do Orçamento do Estado transformou-se numa proclamação de medidas muitas delas sem explicação de como serão executadas e de quais os efeitos esperados para além da despesa inscrita, despesa esta, não raras vezes, apresentada sob a forma de um agregado dispensando informação à sua compreensão.

A Segurança Social não escapa a esta dificuldade. Os objectivos da coesão social, da equidade intergeracional, da inclusão social, da justiça social ou da sustentabilidade financeira e sustentabilidade social não podem ou não deveriam ser focados numa perspectiva exclusiva de curto prazo, aquela a que respeita um exercício orçamental, deixando para segundo plano, ou mesmo ignorando, o horizonte de médio e longo prazo.

Convenhamos, também, que o Orçamento do Estado não é por vocação o local certo para se avaliarem e debaterem as dimensões de médio e longo prazo que tão necessárias são para se compreender e enquadrar as medidas e políticas inscritas num exercício orçamental de horizonte anual.

É neste quadro que ficam aqui algumas considerações sobre as medidas mais mediatizadas do Relatório do Orçamento do Estado de 2017 em matéria de Segurança Social.

Actualização de pensões

É importante recuarmos a 2010 para termos presente que, a partir desta data, foi suspensa a actualização das pensões dos regimes contributivos – Sistema Previdencial de Segurança Social (SPSS) e Caixa Geral de Aposentações (CGA) – qualquer que fosse o seu montante, incluindo as pensões mais baixas, e que, pelo contrário, durante o período de ajustamento (intervenção da Troika) as pensões dos regimes não contributivos – estatutárias, sociais e rurais – foram actualizadas de acordo com opções políticas do governo de então.

Vale a pena referir que as pensões dos regimes não contributivos sempre foram atribuídas sem a verificação de uma “condição de recursos”. Quer isto dizer que nunca se cuidou de saber se quem as recebe está em situação de pobreza ou vulnerabilidade económica que justifique e exige o apoio do Estado.

Evidentemente que são bem-vindas as actualizações das pensões de ambos os regimes. Vejamos o que vai acontecer:

  1. O governo garante a actualização anual de pensões prevista na lei – serão abrangidas todas as pensões cujo valor mensal não ultrapasse 2.515,32 euros. O governo altera, para efeitos desta actualização, o 1º escalão das pensões que passa a englobar pensões até ao valor mensal de 2 vezes o IAS – 838,44 euros – em vez do limite superior em vigor estabelecido em 1,5 vezes o IAS. Ou seja, é abrangido por uma maior actualização um maior número de pensionistas.
  2. Qual é a fórmula de cálculo das pensões?

    *Com excepção para valores superiores a 12 IAS nas situações específicas referidas no Artigo 10º da Lei º 53-B/2006 IAS (Indexante de Apoios Sociais) = 419,22 € (em vigor) IPC sem habitação
    *Com excepção para valores superiores a 12 IAS nas situações específicas referidas no Artigo 10º da Lei º 53-B/2006
    IAS (Indexante de Apoios Sociais) = 419,22 € (em vigor)
    IPC sem habitação
  3. O governo procede a uma actualização extraordinária das pensões de valor inferior a 1,5 vezes o IAS – 628,83 euros – que não tenham sido actualizadas ao longo do período 2011 – 2015, de modo a assegurar um aumento máximo de 10 euros mensais por pensionista face aos valores recebidos em 2016. Ficam, portanto, excluídas desta “benesse” as pensões mais baixas das mais baixas, dos regimes não contributivos, estando a medida modelada para ser aplicada a pensões dos regimes contributivos.

O Relatório do OE não fornece dados sobre o número de pensionistas e o número de pensões abrangidos e sobre os valores globais e a desagregação por escalões para cada uma das medidas de actualização de pensões. Temos aqui uma dificuldade objectiva de compreendermos como é feita a redistribuição concreta de rendimento pelos grupos de pensionistas abrangidos e excluídos.

Esta falta de transparência em nada contribui para a credibilidade das medidas e suscita dúvidas e confusões, de que os dias que se seguiram à apresentação do OE 2017 são um bom exemplo.

A explicação política entretanto vinda a público para não alargar a actualização extraordinária de 10 euros às pensões dos regimes não contributivos – as mais baixas das pensões mais baixas – é que as pensões não contributivas foram aumentadas nos últimos anos enquanto as pensões dos regimes contributivos não o foram.

Não se compreende a ideia de justiça social subjacente a este argumento, quando olhamos para medidas como a redução do IVA da restauração, só para dar um exemplo. Seria preferível dar a quem mais necessita, fazendo uma discriminação positiva.

Por outro lado, a falta de uma “condição de recursos” na atribuição das pensões sociais é perversa. Porque a regra não existe – e tarda em ser implementada – “paga o justo pelo pagador”. As restrições orçamentais falam mais alto. É discriminatório e socialmente injusto não proteger os que mais precisam, independentemente dos regimes a que pertencem, até porque os impostos indirectos sofreram cumulativamente nos últimos anos aumentos significativos, atingindo mais fortemente as pessoas e famílias de rendimentos mais baixos (porque estas gastam em bens e serviços uma parcela maior do seu rendimento).

As prestações sociais dos regimes não contributivos (grupo no qual também se incluem outras prestações igualmente importantes como o Complemento Solidário para Idosos, o Abono de Família, o Rendimento Social de Inserção ou o Subsídio Social de Desemprego) têm uma função redistributiva, tendo por objectivo, entre outros, o combate à pobreza e promoção da inclusão social. Esta função redistributiva reflecte em concreto escolhas políticas que gozam naturalmente de graus diversos de arbitrariedade política.

O mesmo não se deveria passar em relação às decisões que afectam as pensões dos regimes contributivos (SPSS e CGA), aquelas que são formadas com o pagamento de contribuições sociais pelos trabalhadores e entidades patronais ao longo da vida activa.

Nestes regimes há regras sobre as taxas contributivas e a formação das pensões, sobre a actualização das pensões, sobre a idade normal de reforma, sobre penalizações por reformas antecipadas e bonificações por adiamento da passagem à reforma, etc.

Se há princípios que devem ser preservados e reforçados nos regimes contributivos são o princípio da contributividade e o princípio da estabilidade.
Com efeito, mexer de forma avulsa nas pensões destes regimes subverte o sistema, assim como o recurso aos impostos para os financiar introduz um carácter assistencialista que estes regimes não devem ter, desvirtuando a relação sinalagmática que se estabelece entre o esforço contributivo e a pensão prometida/auferida.

Se há uma fórmula de actualização de pensões estabelecida na lei, esta deve ser cumprida. Esta fórmula subordina a actualização das pensões à evolução da variável macroeconómica PIB real.

Podemos discutir – e deveríamos fazê-lo – o tipo de mecanismo de indexação e a sua construção em função dos objectivos pretendidos. Mas este é o plano de discussão que importava fazer previamente, evitando-se medidas ad hoc.
A actualização das pensões é feita com base num mecanismo que não garante a reposição integral do poder de compra para pensões acima de 2 vezes o IAS (anteriormente 1,5 vezes o IAS), uma vez que depende da taxa de crescimento real do PIB: por exemplo, uma pensão mensal de 900 euros terá que aguardar por um crescimento do PIB entre 2% e 3% para ser actualizada pelo IPC.

A arbitrariedade de intervenção política nos regimes contributivos destrói os princípios da estabilidade e previsibilidade que deveriam caracterizar esses regimes. Hoje, o governo decidiu dar 10 euros a determinadas pensões, amanhã outro governo decidirá não dar ou multiplicar por dois. Hoje, o governo decidiu alargar o primeiro escalão para efeitos de actualização, amanhã outro governo pode fazer o seu contrário.

O sistema de segurança social contributivo está a ser pervertido. É cada vez menos seguro social, em que as contribuições da economia via salários e outros rendimentos (por exemplo os profissionais liberais que tem um sistema de contribuição definida) são insuficientes para acomodar todas as prestações (velhice, invalidez, sobrevivência), o que implicaria a alteração das taxas contributivas (TSU) ou a redução das despesas, e está em via de se tornar um sistema estatal cujo financiamento são impostos gerais consignados (exemplo do novo IMI para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, quando a Lei de Bases da Segurança social não prevê este tipo de financiamento).

Por exemplo, na Dinamarca (universal pensions) o sistema de base é todo financiado por impostos pelo que existe transparência total. Acima da base, as contribuições provenientes da economia estão relacionadas com as prestações e são pagas pelos trabalhadores e pelas empresas.

A proposta de actualização das pensões, orçamentada em 167 milhões de euros no total do Sistema Público de Segurança Social e CGA (SPSS) não vai apenas vigorar em 2017, irá permanecer no futuro. Tendo o SPSS um desequilíbrio financeiro estrutural (o que é também verdade para a CGA), o Relatório não evidencia de forma clara e directa o impacto desta medida a médio e longo prazo nas contas financeiras do Sistema. Evidencia que em 2017 a transferência extraordinária do Orçamento para a Segurança Social, no valor de 429 milhões de euros, servirá em parte para pagar a actualização de pensões do SPSS.

“IMI das pensões”

O adicional ao imposto municipal sobre imóveis introduzido no Relatório do OE é apresentado como fazendo parte do objectivo anunciado pelo governo de diversificação das fontes de financiamento.

O “IMI das pensões” é um elemento progressivo de base pessoal que tributa de forma mais elevada os patrimónios mais avultados com uma taxa marginal de 0,3% aplicada aos patrimónios que excedam os 600.000 euros por sujeito passivo, orçamentado em 160 milhões de euros. A receita deste imposto é transferida para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) para reforçar a sustentabilidade do SPSS

A medida tem o mérito de o governo reconhecer que o SPSS tem um desequilíbrio financeiro estrutural. No entanto, a receita será canalizada através do FEFSS para a aquisição de dívida pública nacional e/ou investimento em “habitação acessível”, colocando muito legitimamente a questão da utilidade desta reserva.

Todas as projecções conhecidas – nacionais e europeias – apontam para a existência de dívida implícita nos regimes de pensões contributivos – SPSS e CGA. Quer isto dizer que as contribuições sociais projectadas não serão suficientes no futuro para fazer face às pensões em pagamento e prometidas. O Relatório sobre a Sustentabilidade Financeira da Segurança Social anexo ao Relatório do OE evidencia isto mesmo.

Sobre as contas e projecções apresentadas neste Relatório, temos, de novo, uma dificuldade objectiva de compreendermos como é que em apenas um ano – de 2016 para 2017 – o primeiro saldo negativo do sistema é adiado dez anos – passando de 2020 para 2030 – tendo sido utilizados, como é referido no Relatório, os mesmos pressupostos demográficos e económicos em ambos os exercícios.

A falta de dados sobre a evolução da população, designadamente dados físicos relativos à população activa, população empregada, população contributiva, etc. e indicadores fundamentais do Sistema como os índices de dependência e o rácio de suporte não permitem compreender os resultados e retiram credibilidade às projecções, a estas e às anteriores.

O adiamento significativo da projecção do primeiro saldo negativo – note-se que os saldos negativos já existem – pode traduzir a sensação de uma estimativa que não é rigorosa, mas antes corresponde a um objectivo. Não é a primeira vez que tal sucede. Se recuarmos dez anos na leitura das projecções constantes destes relatórios de sustentabilidade constatamos a facilidade com que as datas dos primeiros saldos negativos e do esgotamento do FEFSS ora são adiadas ora são antecipadas.

É certo que as projecções são exercícios probabilísticos que encerram elevados níveis de incerteza, especialmente no longo prazo, mas uma tal volatilidade não parece ser admissível sem a devida fundamentação técnica.

Não sendo o sistema capaz de gerar as receitas necessárias, os saldos negativos têm sido financiados por transferências do Orçamento do Estado em valor suficiente para fazer face aos compromissos assumidos. Se nos últimos anos os saldos da Segurança Social foram positivos, como não poderia deixar de ser, tal fica-se a dever àquelas transferências sem as quais o Sistema Público de Segurança Social não teria como financiar as pensões em pagamento.

O que o Relatório do OE não faz é explicar como vai o país fazer face ao desequilíbrio financeiro estrutural. Este assunto da maior relevância para o nosso futuro deve ser objecto de um debate prévio sobre como queremos enfrentar o problema.

Queremos financiar os saldos negativos com transferências do Orçamento do Estado? Queremos criar impostos adicionais ou contribuições extraordinárias, queremos fazer consignação de impostos e com que que limites? Que impostos são estes (os impactos na economia são distintos e as distorções que provocam também)? Como queremos distribuir o seu custo? Queremos manter um sistema que promete o que não pode dar, que vai continuar a gerar dívida cada ano que passa? Queremos manter a ilusão de que não é assim?

Mais uma vez o caminho das medidas avulsas não é uma boa solução. O debate do futuro do sistema de pensões tem de ser feito, é imperativo que assim seja, mas naturalmente que o Relatório do OE não é o local onde tal deva acontecer.

Em 2017, o SPSS custará ao OE um total de 590 milhões de euros, dos quais 429 milhões correspondem à transferência para cobrir o saldo negativo do SPSS e 160 milhões à consignação de receita do adicional ao imposto municipal sobre imóveis.

Não deixa de ser oportuno sublinhar que em 2010 o governo terminou com a consignação de 1% do IVA – IVA Social – ao SPSS depois de a mesma ter vigorado durante catorze anos com o objectivo de, justamente, reforçar a sustentabilidade do Sistema. Uma decisão que se veio a demonstrar precipitada num momento em que as projecções já apontavam para a existência de défices financeiros.

Este episódio é elucidativo da falta de estratégia política para lidar com o problema. O IVA Social não desapareceu. A sua consignação foi reorientada para o financiamento de prestações sociais não contributivas.

Nota: Por decisão pessoal, o autor não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

  • Margarida Corrêa de Aguiar

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