Recuo da ordem liberal

Há dois séculos que o Reino Unido e os EUA lideram a ordem liberal e agora estão ambos a recuar, por medo.

No início do século XIX, havia no Reino Unido um debate político importante entre o comércio livre e o proteccionismo. Do lado do comércio livre, estava o economista David Ricardo (1772-1823), figura maior da ciência económica, que defendia, de forma contra-intuitiva, que as tarifas sobre a importação de cereais apenas serviam para aumentar o preço do pão e as rendas dos proprietários agrícolas e que prejudicavam a competitividade das exportações de têxteis.

Do lado proteccionista estavam os proprietários agrícolas, cujo poder relativo foi sendo erodido pela progressiva industrialização do país. Finalmente, na década de 1840 as tarifas sobre os cereais foram sendo diminuídas e o estatuto de primeira potência mundial do Reino Unido fez propagar as teses livre cambistas.

Esta segunda globalização (a primeira foi liderada pelos portugueses, nos séculos XV e XVI) durou até à primeira guerra mundial, momento aproximado em que os EUA passaram a ser a maior economia mundial.

O período entre guerras foi de proteccionismo, seguindo-se a terceira globalização no pós-guerra, liderada pelos americanos. No final dos anos 70, a tendência liberal intensificou-se, sob a influência de Thatcher e Reagan, eleitos quase em simultâneo, baseada em sólidos pressupostos teóricos de, entre outros, Hayek (1899-1992).

Pois estes dois países, que têm liderado a agenda liberal nos últimos dois séculos, votaram, quase em simultâneo, no Brexit e em Trump, fazendo marcha atrás. No entanto, ao contrário do passado, não se movem baseados em forte e consistente ideologia, como anteriormente, mas sobretudo com medo do exterior. Nos EUA, o recuo da ordem liberal é de tal ordem, que até a liberdade de expressão parece posta em causa.

Há quem se iluda a pensar que isto vai unir a Europa, ignorando que as forças em acção no Reino Unido e nos EUA também estão com força crescente na Europa, como as próximas eleições em vários países europeus se encarregarão de mostrar, já a partir de Março na Holanda.

Trump está a tentar passar à prática aquilo que ameaçou fazer durante a campanha eleitoral, sendo ainda incerto até que ponto o sistema de pesos e contrapesos conseguirá moderar os impulsos mais irracionais e imprudentes do novo presidente.

Uma coisa parece evidente: os EUA deverão viver os próximos anos em clima de quase guerra civil, com uma grande escalada de violência, pelo menos verbal, de parte a parte. A hipótese de aventuras militares no exterior deve ser considerada, sendo de recordar a extrema inabilidade que os americanos têm revelado nos últimos casos em que se envolveram, a enorme incapacidade de prever as consequências das suas acções. Todo este poder (e falta de discernimento) nas mãos de Trump são hoje uma enorme fonte de incerteza para todo o mundo.

O Brexit e Trump não deverão gerar um novo ciclo, porque não têm uma base sólida. Eles deverão ser o fim – turbulento – de uma era, mas ainda não o início de algo novo.

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