Pushkar e a Shantidade

Não é por ter sido criado pelo Deus dos deuses mas Pushkar é dos sítios mais especiais da Índia. Pushkar é o mais belo estado que um espírito pode desejar: a shantidade.

Era uma vez Brahma, o criador do Universo, que um dia deixou cair uma flor de lótus e – “plim!” – nasceu um lago sagrado. E logo uma cidade santa, e depois vieram os peregrinos e fizeram um templo a Brahma, criador do Universo, lavrador de lagos com nomes de flor.

Não é por ter sido criado pelo Deus dos deuses mas Pushkar é dos sítios mais especiais da Índia. E já o era antes de aparecerem os mortais com as suas missas e mantras. Pushkar é o mais belo estado que um espírito pode desejar: a shantidade!

Eis uma das grandes exportações da Índia, ensinada em milhares de ashrams, praticada em milhões de tapetes de Yoga. O problema é que a ‘shantidade” só brota em sítios raríssimos e não dá para trazer na mala. Tem de ser vivida imediatamente. Ao contrário do que os falsos padres, vendilhões do templo e neo-malabaristas fumados nos podem fazer crer, ser ou estar shanti não é coisa que se faça com bênçãos caras ou meditações ao pôr-do-sol. Shanti, a paz que ultrapassa o entendimento, é como qualquer milagre ou euromilhões: ou nos acontece ou não.

Ser santo custa, ser shanti é de graça, santidade é o sofrimento da renúncia, shantidade renuncia o sofrimento. É preciso morrer para se ser santo mas só na vida se pode ser shanti.

O problema é que a shantidade pushkariana está ali mesmo atrás da curva mas não é óbvia. Há muitas coisas nesta linda aldeia que podiam vir diretamente do capeta para infernizar a vida ao viajante mais incauto. Por isso, aí vai a palavra mágica que vos protegerá do mau olhado: Não!

Como qualquer santuário deste planeta que ainda acha a ciência demasiado chata, Pushkar sofre de religião organizada. Toda a gente sabe que o verdadeiro segredo de Fátima é quanto lucram as barraquinhas de recuerdos. Pois, também Pushkar tem o seu esquemazinho montado.

Ora, quando o turistinha de coração ao alto se embasbaca com o pitoresco desta aguarela viva e quer descer os ghats (degraus sagrados) que vão até ao lago, eis que logo se materializa um padreco a oferecer florzinhas para a puja (bênção) aos deuses. Na sua versão premium, também dá direito a pozinho vermelho e cocos. Coisas que os deuses adoram.

Depois de alguns “rebebéus” em hindi, o padre evoca o Gandhi na sua versão 2.000 rupias. Como estamos carecas de saber, se há coisa que Gandhi gostava mais de que dinheiro era de religião! Assim que vê-lo envolvido nestas transações divino-monetárias é, no mínimo, uma triste ironia.

Quando o turista nega as notas ao charlatão, é logo amaldiçoado até aos trisnetos vesgos e expulso do cenário a cuspidelas. A coisa pode ficar feia e mais pobre, e lá se vai a shantidade com os cocos.

Por isso não há cá Amens! Aqui o “Não!” vem antes do Namaste. Já basta ter de andar a lutar com macacos, fugir das cornadas de vaca, sujar os pés na peregrinação e tentar dormir com as chinfrineiras das missas, as greves dos Dalit e o cheiro do mal.

Mas se em Jodhpur tínhamos de fugir para escapar à maldição do tempo, em Pushkar temos de ficar para a quebrar. E, com o passar dos dias, o mistério dos rituais desvenda-se, as máscaras caem e o público volta para casa satisfeito.

E num fim de tarde qualquer, quando já nada desejo, dou por mim sentada no camarote do meu terraço, de olhar perdido neste velho pano de cenário que é o lago, as montanhas e a lua. E já não me espanto com a extraordinária beleza disto tudo. Em vez disso, sinto uma inexplicável presença do ser, sinto, sem querer, o estar. E percebo que já não estou em Pushkar. Sou eu o melhor sítio onde se pode estar…

Crónicas indianas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO publica as melhores histórias da viagem à Índia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui.

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