Os quatro mitos da esquerda sobre o SNS

A situação difícil que o SNS vive não é apenas um problema de afetação de recursos, é um problema de má gestão. Que foi muito agravado por este Governo.

Mito 1: As PPPs na saúde são más

Conforme já tive oportunidade de explicar aqui no ECO, ao contrário das PPPs rodoviárias, as PPPs na área da saúde têm sido um caso de boa utilização dos recursos públicos, gerando Value for Money para o setor público. Ou seja, temos tido mais qualidade e um menor custo do que comparando com a maioria dos hospitais do SNS. E há várias razões para que os hospitais PPP tenham gerado valor (e essas razões são de certa forma as “razões espelho” para os maus projetos e contratos que a maioria das autoestradas representa):

  1. Dos quatro hospitais em PPP (Vila Franca, Braga, Cascais e Loures), só Loures não é um hospital de substituição. Isto é, os outros 3 hospitais foram a substituição de uma infraestrutura velha e obsoleta por uma infraestrutura nova. Isto significa que não houve, com exceção de Loures, um acréscimo significativo de oferta. Apenas uma significativa melhoria da qualidade da infraestrutura. Ao contrário da maior parte das autoestradas, que não têm tráfego suficiente para serem sustentáveis e exequíveis.
  2. Se há entidade que sabe como construir e, especialmente, como gerir hospitais é o Estado, através do SNS. Ao contrário das autoestradas, em que o Estado nunca tinha construído um km de autoestrada (recorde-se que a vaga de autoestradas do final dos anos 80 e inicio dos anos 90 foram feitas pela Brisa, que à data das primeiras PPPs, 97-2000, já tinha sido privatizada). Ou seja, no caso dos hospitais o Estado tinha décadas de experiencia e um conjunto de dados e informação muito vasto. Isso permitiu aferir com rigor o custo público daqueles hospitais. Assim, a negociação dos hospitais, ao contrário das autoestradas, foi feita com recurso ao Comparador do Setor Público, impondo ao privado um teto máximo de pagamento e condições de serviço e qualidade rigorosas. Na saúde os contratos foram bem negociados.
  3. Ao contrário do setor da rodovia, na saúde não houve uma “tentação orçamental” na utilização das PPPs na saúde. Por três ordens de razão:

Primeiro, a natureza dos custos. O negócio de uma autoestrada (como qualquer infraestrutura pesada), é um negócio de investimento inicial (capex) e pouco custo operacional (opex). Em Portugal, em média construir 1 km de autoestrada custa 5M€ e a manutenção anual desse km custa 50 mil €. Já o negócio da saúde é um negócio de custos operacionais e não tanto de investimento. O investimento necessário para construir o edifício de um hospital representa cerca de 2 anos dos custos operacionais que esse hospital vai ter.

Segundo, tratando-se de hospitais de substituição, os custos operacionais já existiam anteriormente, tendo apenas substituído (com ganhos de eficiência recorde-se) a natureza do prestador.

Terceiro, e em consequência dos dois pontos anteriores, ao pagar aos hospitais PPPs (na parte do serviço clínico) da mesma forma que se paga aos hospitais do SNS, o Estado não aumentou os seus custos, não tendo o investimento no edifício do hospital uma expressão significativa do ponto de vista orçamental. Assim, não haveria qualquer restrição orçamental em ter aqueles hospitais geridos pelo SNS. E isso aumentou substancialmente a força negocial do Estado, ao contrário das autoestradas em que os maus projetos tinham de ser feitos obrigatoriamente via PPP.

A presença de privados (em condições iguais às dos hospitais públicos como já vimos), cria um benchmark muito relevante para o Ministério da Saúde. Estes hospitais são de boa qualidade a um custo inferior ao do setor público. Qual a razão de racionalidade económica para não termos PPPs na saúde? Da mesma forma que não defendo um SNS totalmente privado (por questões de captura), também não considero que um SNS totalmente público seja o melhor para os cidadãos.
Estes hospitais em PPP recebem do Estado por ato médico o mesmo que qualquer hospital público. E para os utentes não há diferença. O utente não perceciona se o hospital é em regime PPP ou pertence ao SNS. E diga-se que o que interessa a um utente é que seja bem atendido. E aos contribuintes que os recursos públicos sejam alocados da forma mais eficiente. Deixemo-nos de ideologias “baratas”: é irrelevante se o Estado é o prestador do serviço. O que interessa é que o Estado garanta a todos o acesso ao serviço, nas melhores condições possíveis e ao menor custo possível.

Mito 2: A direita votou contra o SNS porque é contra o SNS

Outro mito tem sido que em 1979 o PSD e o CDS votaram contra a lei que criou o SNS e como tal são contra a existência de um SNS. Este argumento é quase tão patético como o de que há quem “goste da austeridade” ou que o anterior governo apenas pretendia “humilhar”, “castigar” e fazer com que os Portugueses “sofressem”. Achar que alguém que quer ganhar eleições (desejo principal de qualquer político) vai maltratar a maior parte dos eleitores é evidentemente infantil e roça a indigência intelectual, além de ignorar por completo o período 2008-2011, e sobretudo o pedido de resgate financeiro de 2011. Mas esta narrativa é contudo popular e muita gente acredita mesmo nela.

Ora, afirmar que tendo votado contra a lei que criou o SNS é ser contra o SNS é simplesmente de uma desonestidade intelectual por três razões:

Primeiro, porque uma votação em 1979 não nos diz nada sobre o pensamento político em 2011 ou em 2018, dado que passaram quase 40 anos. Basta pensar que em 1975 o PSD e o PS votaram a favor das nacionalizações e em 1989 fizeram uma revisão constitucional para privatizar quase tudo o que tinha sido nacionalizado. Chama-se a isto decidir em função do contexto da época.

Segundo, vale a pena consultar o debate que antecedeu a votação do SNS. Fica claro que PSD e CDS eram favoráveis (nem podia ser de outra forma) à criação de um Sistema Nacional de Saúde. O voto contra espelhava a oposição a um SNS que à data de 1979 era focado quase exclusivamente no setor público. O que o PSD pretendia era um sistema misto (como existe em diversos países Europeus), entre público e privado na prestação dos cuidados de saúde e público na cobertura desses encargos. É que a proposta do PS dizia, por exemplo, isto: “Orientar a sua acção para a socialização da medicina e dos sectores médico-medicamentosos, disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o SNS e, finalmente, disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso de produtos farmacêuticos, biológicos e terapêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico”.

Terceiro, porque em quase 40 anos de SNS todos os governos procuraram ampliar e melhorar o SNS. Ninguém de boa-fé pode dizer que os governos PSD entre 1985-1995, 2002-2005 ou mesmo o governo 2011-2015 (já iremos ao próximo mito) não procuraram melhorar e dotar o SNS de mais meios. Basta ver o crescimento em % da despesa em saúde ‘per capita’ para confirmar isso (a descida entre 2011 e 2013 será explicada no ponto seguinte, mas resulta em partes iguais do governo Sócrates e do governo Passos). Ou a variação do número de médicos ou enfermeiros por ano. Desde 1991 que todos os anos aumentam o número de médicos e enfermeiros no SNS, mesmo no período 2011-2013.

Mito 3: O governo PSD “destruiu” o SNS entre 2011 e 2015

Na sua “maldade” de querer salvar o país da bancarrota e de ter de cumprir o acordo com a Troika assinado pelo governo de José Sócrates, o governo anterior reduziu a despesa com Saúde entre 2011 e 2013. Em 2011, a despesa do SNS foi de 9.6 mil M€, sendo que em 2012 foi de nove mil M€ e em 2013 foi de 8.9 mil M€ (dados da Pordata). Quer isto dizer que o anterior governo queria “destruir” o SNS? Claro que não, e isso explica-se por 5 razões principais:

  1. Entre 2011 e 2013, estava-se num contexto de forte restrição orçamental. Sendo o SNS a maior área de despesa pública é natural que se procurasse poupanças orçamentais nesse setor. Achar que se podia passar de um défice de 10% PIB para 3% PIB em 4 anos sem impor sacrifícios é não viver nesta realidade.
  2. A redução não começou no governo PSD-CDS, mas sim no 2º governo Sócrates. Em 2010, a despesa do SNS era de 10.2 mil M€. Em 2011, reduziu-se em 600 M€. Entre 2011 e 2013, reduziu-se em outros 600 M€. Só que a redução do OE/2011 foi resultado do corte de salários entre 3.5% e 10% (recorde-se que o único corte salarial que existiu entre 2011 e 2016 foi o decretado pelo governo Sócrates). Já a redução entre 2011 e 2013 incidiu sobretudo na despesa com medicamentos, que se reduziu em 300 M€ (sendo que a despesa com medicamentos dos utentes diminuiu 100 M€) (mais uma vez dados da Pordata).
  3. Como vimos atrás, entre 2011 e 2013 o número de médicos e enfermeiros continuou a aumentar. E, além disso, muitos deles estavam a 35h e passaram para 40h, o que só por si implicou um aumento de horas de trabalho de 15% nesses profissionais. Numa área em que se trabalha por turnos em permanente laboração (24h sobre 24h) isto é crítico na melhoria da eficiência.
  4. Entre 2013 e 2015, quando a situação orçamental melhorou, a despesa com o SNS voltou a aumentar (+200 M€).
  5. Aquilo que Paulo Macedo fez entre 2011 e 2015 foi procurar gerir melhor os recursos disponíveis e cortar nas margens excessivas da indústria farmacêutica. Se fosse muito mau, este governo não o tinha nomeado para a CGD.

Mito 4: o Governo da “geringonça” tem melhorado muito o SNS

O último mito é que este governo “salvou” o SNS. Estranhamente aquilo que se vê na imprensa são situações caóticas em muitos hospitais. É verdade que a despesa com saúde tem aumentado. Entre 2015 e 2016 (dados Pordata), aumentou de 9.1 mil M€ para 9.4 mil M€. Só que o aumento com despesas com pessoal (por via da anulação dos cortes salariais “bonzinhos” do tempo do Sócrates) foi de 200 M€. Também é verdade que o número de médicos e enfermeiros aumentou (tal como em todos os anos anteriores nas ultimas décadas).

Em 2015, havia 17 mil médicos nos hospitais públicos (excluindo os hospitais PPP) e em 2016 havia 17.800 médicos (dados ACSS). Contudo, este aumento de 4.7% tem de ser comparado com a passagem de uma parte dos médicos de 40h para as 35h. De acordo com a ACSS, havia 5.200 médicos que em 2016 passaram das 40h para as 35h, o que implica uma redução de 5% do tempo de trabalho total. Como se vê, o aumento de médicos não compensou a perda de horas de trabalho decorrente da passagem de 40h para 35h. Já os enfermeiros passaram de 38.700 para 40.300, um aumento de 1.5%. Contudo, 25 mil enfermeiros passaram das 40h para as 35h, uma perda de cerca de 9% do tempo de trabalho.

Desta forma, a situação difícil que o SNS vive não é apenas um problema de afetação de recursos. É sobretudo, como já reconheceu o ministro Centeno (e o ministro Adalberto tem de concordar, porque no governo “são todos Centeno”), um problema de má gestão. Que foi muito agravado por este governo. Gasta mais, mas gasta muito pior.

Seria bom que ao invés de nos preocuparmos com ideologias, o SNS fosse gerido com pragmatismo, voltado para uma boa assistência aos doentes com uma utilização eficiente dos recursos dos contribuintes. E que ao invés de olharmos apenas para os inputs (quanto gastamos e que recursos existem), o SNS fosse gerido numa lógica de outputs e sobretudo de outcomes.

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