Lisboa e o Turista Acidental

É fácil imaginar Agatha Christie nas ruas de Lisboa como se fossem as ruas de Aleppo, na Síria, no início do século XX, e a escrever “Crime no Expresso do Oriente” no quarto 203 do Hotel Baron.

Lisboa é a cidade branca com um rio que parece o mar. Nas estatísticas, Lisboa recebe por ano entre 4,5 e 6 milhões de turistas, tem um ratio de 9 turistas por cada residente e exibe uma densidade de 300 turistas/km2. A indústria do turismo cresce quatro vezes mais do que a economia nacional. Nas páginas do Financial Times surgem anúncios de apartamentos na Baixa Pombalina a partir de £2.5 milhões de libras com vista para o Rossio e Praça da Figueira. Que importa se os indígenas são expulsos do centro da cidade deserta. E também não há motivo de preocupação pelo facto das débeis infraestruturas da cidade ficarem sobrecarregadas. Os ecologistas, oficiais e oficiosos, não vêem impactos negativos na Natureza. E as forças vivas da cultura ignoram olimpicamente as delirantes ameaças ao património e herança cultural. Lisboa vive um novo Renascimento alimentado pela insólita especiaria do turismo, com a cor e a melodia do dinheiro a perfumar a cidade iluminada, enquanto longe do rio as gaivotas expulsas da margem perseguem os pombos no céu azul da cidade.

A última vez que Lisboa conheceu um tão grande afluxo de gente foi em 1940, quando os judeus da Europa encontraram na cidade o último portão aberto do imenso campo de concentração do Continente. Estima-se que entre 1940 e 1941 cerca de 100.000 pessoas conseguiram chegar ao purgatório pacífico garantido pela neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial. Nesses dias varridos da memória nacional, a Baixa repleta de gente era o centro cosmopolita da cidade, com os cafés cheios em que língua mais falada era o alemão e o eléctrico 28 subia para a zona da Estrela alimentado pela energia eléctrica do polaco que se falava a bordo. Encalhado no extremo da Europa, Saint-Exupéry referia-se a Lisboa como um “paraíso claro e triste” que “sorria com um sorriso um pouco pálido”. A Guerra acabou, tudo passou, nada ficou.

Hoje Lisboa é o destino da moda e o melhor destino do Mundo. Os ‘liners’ repletos de turistas sobem o Tejo com um perfil imperial. Os aviões são manchas negras no Sol. Entrar em Lisboa é regressar a parte de uma Europa remota e esquecida, um estranho aglomerado onde se cruza o Norte de África com o Médio Oriente, o Islão com a Cristandade, Roma com Cartago e a Grécia. Lisboa resulta num lugar exótico, um exotismo cosmopolita à maneira do Cairo antes da Primavera Árabe. É fácil imaginar Agatha Christie nas ruas de Lisboa como se fossem as ruas de Aleppo, na Síria, no início do século XX, e a escrever “Crime no Expresso do Oriente” no quarto 203 do Hotel Baron.

No entanto, Lisboa fornece o exotismo low-cost, com os segredos da cidade guardados na compilação das ‘apps’ que iluminam os écrans dos smartphones. Os tuk tuks percorrem nervosos as ruas da cidade velha, um veículo aberrante, típico da Tailândia, e que transformam a cidade num imenso carrossel. Na psicogeografia do turista, Lisboa fornece o esplendor do exótico sem o perigo do desconhecido, sem as incertezas da viagem, sem a angústia do destino, as hesitações da vontade, sem as aventuras que ensinam e que mudam uma vida. Os turistas não são viajantes empenhados no ‘Grand Tour’, mas coleccionadores de selfies para a grande exposição do Instagram.

Com a gentrificação ao gosto do glamour exótico, a Baixa Pombalina está a ser transformada num bairro inteiro de hotéis e apartamentos de luxo, onde as velhas e habitadas águas – furtadas, cenário de tantas ficções e do imaginário sórdido da cidade, simplesmente desaparecem na claridade luminosa das vistas para o Tejo. Lisboa está a mudar e a tornar-se uma caricatura de si mesmo – um cenário em vez de uma cidade.

Quando Anthony Bourdain passa por Lisboa em 2011 para as filmagens de um episódio a incluir na série “No Reservations” da CNN, o ambiente sonoro é criado pela música dos Dead Combo. E na música dos Dead Combo vai parte de uma Lisboa melancólica, moderna, sombria, próxima e longínqua, inscrita no tempo, na memória, na identidade da cidade esquecida na navalha de uma noite tão escura. Na música dos Dead Combo está o mistério de Lisboa.

Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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