O erro das 35 horas

O início do mandato deste governo foi pautado por um oportunismo que não olhou a meios para manter o poder. Não apenas a Saúde, mas também a educação, as infraestruturas, a Defesa, entre outras.

Aparentemente, está instalado o caos no SNS. Todos os dias há notícias que, por falta de meios humanos, serviços têm de fechar ou reduzir significativamente a sua capacidade de prestar serviços de saúde às populações.

É verdade que muitas vezes existe empolamento de determinados fatores na Comunicação Social. Recordo sempre o esforço em 2006-2007 do ministro Correia de Campos em fechar maternidades que não tinham número de partos suficiente para puderem ser capazes de prestar serviços de obstetrícia nas condições exigidas. Nessa altura houve muitas notícias de mulheres a parir dentro de ambulâncias enquanto faziam a viagem para o hospital mais próximo. Depois da demissão do ministro (e do recuo na politica de encerramento de maternidades), deixou de haver notícias de mulheres a terem crianças nas ambulâncias. É verdade que o ministro foi tentando fechar maternidades ignorando (provavelmente por razões pessoais) o “elefante na sala” que é o erro de ter a “Maternidade Alfredo da Costa” aberta no contexto de serviços de obstetrícia que Lisboa tem.

Mas em todo o caso as noticias sobre o caos nos serviços do SNS têm sido muitas, pelo que não é possível ignorar o que se esta a passar. Nem será tudo apenas empolamento dos jornais. Ou seja, fica a impressão que temos hoje piores serviços de saúde do que tínhamos há uns anos atrás, quando estávamos em contexto de forte restrição orçamental.

Verdade que muitos têm dito que se gasta mais em saúde em 2017 do que em 2014. Falta saber se esse aumento de despesa é apenas nominal ou é real (ou seja, se apenas compensa o efeito de aumento de preços e a reversão dos cortes salariais decididos por José Sócrates em 2010) e se esse aumento de despesa não foi acompanhado de uma redução de eficiência (a questão da passagem das 40h semanais para as 35h).

 

Ou seja, estamos a gastar mais, mas será que gastamos melhor? Isto porque, quer como contribuintes, quer como utentes do SNS, a nossa preocupação não é com o volume de inputs (ou seja, se há mais dinheiro, médicos, enfermeiros, etc.), mas com o volume de outputs (ou seja, se há mais consultas, cirurgias, etc.) e com os outcomes (se as pessoas que são tratadas vêm o seu problema resolvido ou pelo menos, quando não é possível curar, mitigado).

Mas temos hoje no SNS mais dinheiro que em 2015, primeiro ano depois do programa da troika?

Em 2016, a despesa (depois de corrigir a variação de dívidas) aumentou cerca de 450 M€. Esse aumento foi sobretudo direcionado para as despesas com pessoal (+ 200 M€) e para mais aquisição de bens e serviços (+150 M€) (gastando sobretudo mais com medicamentos, refletindo uma alteração na tendência que vinha dos anos anteriores, de redução de custos). Refira-se que a despesa com pessoal teve de acomodar a reversão dos cortes salariais. A despesa com pessoal aumentou 5,8%, mas houve que compensar essa reversão, cujos cortes, em média, foram de 5%. Mas em 2016 reduziu-se o investimento em mais de 40 M€. Já em 2017 o investimento voltou a reduzir-se. Em 2017 o investimento foi inferior em 50 M€ face a 2015 (menos -35%).

Ou seja, temos mais dinheiro, mas que foi canalizado sobretudo para a despesa com pessoal, sobretudo por via da reversão dos cortes salariais.

Sei que alguns vão dizer que temos em 2017 mais médicos e enfermeiros que em 2015. Conforme demonstrei há algumas semanas atrás em artigo no ECO, desde pelo menos os anos 80 (em que há dados), todos os anos o número de médicos e enfermeiros tem aumentado. O que é natural, porque o envelhecimento da população tem feito com que a procura de cuidados médicos tenha subido sempre.

Em 2015 havia 17 mil médicos nos hospitais públicos (excluindo os hospitais PPP) e em 2016 havia 17.800 médicos (dados ACSS). Contudo, este aumento de 4.7% tem de ser comparado com a passagem de uma parte dos médicos de 40h para as 35h. De acordo com a ACSS havia 5.200 médicos que em 2016 passaram das 40h para as 35h, o que implica uma redução de 5% do tempo de trabalho total. Como se vê na tabela abaixo, o aumento de médicos só compensou a perda de horas de trabalho decorrente da passagem de 40h para 35h, não aumentou a capacidade (temos mais 800 médicos, mas apenas mais 6 mil horas de trabalho por semana nos mais de 80 hospitais públicos – Isto é, 800 médicos a mais apenas adicionaram mais 20 minutos de trabalho semanal por médico).

Já os enfermeiros passaram de 38.700 para 40.300, um aumento de 1.5%. Contudo, 25 mil enfermeiros passaram das 40h para as 35h, uma perda de cerca de 9% do tempo de trabalho. Ou seja, em 2016, apesar de haver mais 1.600 enfermeiros temos menos 61 mil horas de trabalho por semana no total do SNS.

O aumento de médicos em 2017 permite ter hoje mais 2.6% de horas que em 2016. No total, entre 2015 e 2017, o número de horas semanais de médicos aumentou 3.5%. Mas para isso foi preciso aumentar o número de médicos em 7.3%. Já nos enfermeiros, a decisão de reduzir para 35h (que ainda só abrangeu metade dos enfermeiros, sendo que em 2018 os restantes passarão para as 35h, agravando o problema). É que o nº horas de trabalho semanal dos enfermeiros reduziu-se entre 2015 e 2017 em 1,3%. Isto apesar de haver mais 7% de enfermeiros. Ou seja, mais quase 2 mil enfermeiros, mas menos 20 mil horas de trabalho por semana.

De 2016 para 2017 basta ver que o número total de consultas praticamente não aumentou (passou de 12 milhões e 140 mil para 12 milhões e 170 mil). Mais recursos, mas sem mais outputs. O número de camas passou de 2016 para 2017 de 21.384 para 21.347 (menos camas, mesmo com mais dinheiro gasto).

Era visível a qualquer pessoa que o argumento de que a redução para as 35h não teria custos era de uma indigência intelectual confrangedora. Admito que em serviços de apoio (back-office), pode não haver um aumento marginal de produção por se trabalhar mais uma hora por dia. Mas a Administração Pública é sobretudo serviços diretos aos cidadãos (polícia, educação, saúde, etc). E aí, sobretudo em serviços que operam 24h, como os hospitais, e que têm mais procura que oferta (e dai as listas de espera para cirurgias e consultas e os tempos longos que muitas vezes se tem nas urgências), as 40h fizeram uma diferença significativa. Diferença em aumentar a oferta e em reduzir os custos. Piores serviços gastando mais dinheiro. E como os recursos não aumentaram o suficiente, situações de rutura.

No fundo, o facilitismo e a mediocridade que temos visto desde novembro de 2015. Primeiro era tudo fácil. Que as dificuldades só tinham começado em 2011 porque havia uns tipos maus que gostavam da “austeridade”. Ignorando que desde 2010 José Sócrates vinha conduzindo uma política de austeridade (os chamados “PEC2 e PE3”) para corrigir os erros da política económica até 2010.

O início do mandato deste governo foi assim pautado por um oportunismo que não olhou a meios para manter o poder. Tudo foi feito em 2016 para garantir que a “geringonça” se mantinha no poder. O ténue crescimento económico e a redução dos juros via BCE foram usados para manter o governo e garantir o poder a António Costa. Mesmo sabendo que essas decisões hipotecavam o futuro. Mesmo sabendo que na próxima recessão as Finanças Públicas não aguentarão esse embate. Mesmo sabendo que as decisões estavam a piorar todos os serviços do Estado. Não apenas a Saúde, mas também a educação, as infraestruturas, a Defesa, entre outras.

Em síntese, o que podemos dizer hoje sobre o SNS:

  1. Que se gasta mais recursos (dinheiro, médicos, enfermeiros, etc.) mas que isso não aumentou a capacidade de produção de serviços médicos nos hospitais.
  2. Que a decisão de reduzir o horário das 35 horas reduziu bastante a eficiência do SNS. Gasta-se mais para um nível de produção inferior ou quanto muito igual.
  3. A situação difícil que o SNS vive não é apenas um problema de afetação de recursos. É sobretudo, como já reconheceu o ministro Centeno (e o Ministro Adalberto tem de concordar, porque no governo “são todos Centeno”), um problema de má gestão. Que o nível de incompetência na gestão é hoje muito maior.

Seria bom que ao invés de nos preocuparmos com ideologias o SNS fosse gerido com pragmatismo, voltado para uma boa assistência aos doentes com uma utilização eficiente dos recursos dos contribuintes. E que ao invés de olharmos apenas para os inputs (quanto gastamos e que recursos existem), o SNS fosse gerido numa lógica de outputs e sobretudo de outcomes.

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